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    Luís Francisco Carvalho Filho

    O poder das patrulhas

    23/09/2017 02h00

    Reprodução/Facebook
    Mostra 'Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira', no Santander Cultural, em Porto Alegre
    Mostra 'Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira', no Santander Cultural, em Porto Alegre

    Assim como os terremotos produzem réplicas (abalos sísmicos subsequentes), a censura, sobretudo quando eficaz, é gatilho para ataques adicionais à liberdade de expressão. O que se compara é a dinâmica dos eventos, não as consequências.

    Depois do abrupto encerramento da "Queermuseu", em Porto Alegre, a polícia de proteção à criança de Mato Grosso do Sul apreendeu a tela "Pedofilia", exposta no Museu de Arte Contemporânea, em Campo Grande, e a Justiça de Jundiaí (SP) proibiu a encenação de "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu". Poucos dias separam os três acontecimentos.

    O movimento é conservador. Além de sedimentar valores e crenças em abaixo-assinados e redes sociais, tem o costume de entrar em juízo e protestar. Assim, inibe instituições públicas e privadas, mobiliza parlamentares e juízes.

    A censura é normalmente efêmera porque é ilegal e encontra resistência nos tribunais (em 2001, o Chile foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por vetar, durante anos, o filme "A Última Tentação de Cristo", de Martin Scorsese), mas seus efeitos culturais são cumulativos.

    É verdade que estas forças empenhadas em censurar sentem-se fortalecidas pelo impeachment e pela queda do PT, mas a acirrada contenda política atual não explica tudo. Encerrado o ciclo dos presidentes generais (1964-1985), sempre houve controvérsias.

    Antes da Constituição de 88, Sarney impediu, em nome da fé, a exibição de "Je Vous Salue, Marie" ("Eu Vos Saúdo, Maria"), filme de Jean-Luc Godard. Mas o que é mais compreensível para crianças, a fábula de Jesus de sexo trocado ou a de Jesus não nascido do sexo?

    A Prefeitura de Marília (SP) restringiu em 2016 o uso do Teatro Municipal a espetáculos de "alto nível" e que não contrariem a moral e a ordem pública.

    A nudez é reprimida pela Polícia Militar como perversão: em Curitiba (2013) e Recife (2017) foi claro o propósito de interferir em roteiros artísticos, moduláveis apenas pela classificação etária.

    Pensamentos politicamente corretos e progressistas também criam embaraços para as artes, para o jornalismo, para o conhecimento.

    A peça "A Mulher do Trem" foi cancelada pela instituição financeira que a patrocinava em São Paulo (2015) porque a técnica circense "blackface" (pintar o rosto de negro, com tinta ou carvão) é racismo. O argumento de que artistas devem ser sensíveis a segmentos sociais eventualmente ofendidos pela representação (religiosos, feministas etc.) está na gênese dos patrulhamentos.

    A ideologia cria fossos e incongruências. Da mesma maneira que fecham os olhos para as atrocidades de Maduro na Venezuela, setores de esquerda permaneceram em silêncio diante da intensa perseguição de homossexuais em Cuba –"maricones", agentes do imperialismo, fruto da decadência burguesa.

    Tem razão Hélio Schwartsman quando identifica nas decisões judiciais e policiais o cerne do problema. Se artistas e instituições privadas têm a alternativa de submissão à patrulha e à autocensura, agentes públicos não são guardiões de valores morais. Qualquer que seja o enredo, de bom ou mau gosto, é proibido proibir.

    A censura deveria ser definida como delito. Abuso de autoridade se pune com a perda do cargo.

    luís francisco carvalho filho

    É advogado criminal. Foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95. Escreve aos sábados,
    a cada duas semanas.

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