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    Luís Francisco Carvalho Filho

    A Justiça e as palavras

    30/12/2017 02h00

    Notícia curiosa de 2017, o economista-chefe do Banco Mundial, Paul Romer, foi afastado das funções porque patrulhava sua equipe exigindo concisão e clareza em relatórios, mensagens e manifestações técnicas. Perdeu o braço-de-ferro.

    Toda profissão tem um arsenal crescente de jargões para "jogar poeira nos olhos do populacho", lembra William Zinsser em seu consagrado manual "Como Escrever Bem" (ed. Três Estrelas, 2017).

    A obra de Zinsser é dedicada ao texto jornalístico e de não ficção, mas suas obsessões críticas -contra excessos e afetações pomposas- servem para qualquer tipo de comunicação escrita ou oral. Deveria ser lida por todos. Assim como na economia, concisão e clareza no mundo da Justiça são pedras preciosas.

    O Brasil produziu ao longo dos tempos códigos impecáveis do ponto de vista linguístico, capazes de definições exatas como a do homicídio, em apenas duas palavras, "matar alguém". Aqui foram publicadas obras jurídicas enxutas e diretas, por isso consideradas indispensáveis para a vida forense, como o "Código de Processo Civil" ("Revista dos Tribunais", 1974) de Theotonio Negrão, o "Código Penal" (ed. Saraiva, 1980) de Celso Delmanto e a "Constituição Federal Anotada" (ed. Saraiva, 1984) de Celso de Mello. Mas a prolixidade é uma força perversa, imortal.

    A culpa não é do computador e do "corta e cola" (formidável ferramenta para a transferência de conteúdos), assim como seria injusto responsabilizar as transmissões da TV Justiça pela fogueira de vaidades que afeta o plenário do STF.

    Advogados, juízes e promotores multiplicam o número de palavras em suas peças como se tamanho fosse documento: hoje é comum ver denúncias, defesas, iniciais, contestações, réplicas, recursos e sentenças com 100, 200, 300 laudas. E ler o que escrevem é muitas vezes um sonolento martírio. Os textos, repletos de advérbios inúteis, como "entrementes", "outrossim" e "destarte", são redundantes, confusos, falsamente eruditos.

    O problema não é nacional. Zinsser lembra que Jimmy Carter, presidente dos EUA entre 1977 e 1981, exigia que normas emanadas do Executivo fossem "simples e claras" e que o governo Bill Clinton (1993-2001) sugeria a substituição do "juridiquês" por expressões compreensíveis.

    Não se trata apenas de vocação elitista impedindo a percepção do que acontece no recinto dos tribunais. Há uma espécie de jogo ilusionista, como se o número de páginas fosse indicativo da procedência de uma demanda ou do acerto de uma decisão. Em tempos de judicialização da política, até a imprensa se deixa embalar por este sentimento pueril, chamando a atenção, por exemplo, para a gravidade da acusação criminal que exigiu centenas de páginas para ser descrita.

    Nos tribunais, julgadores vasculham o que é óbvio e esbanjam conhecimentos irrelevantes para o desfecho da causa. Perde-se um tempo precioso -uma das razões para a Justiça tardar, um dos motivos para a proliferação da insegurança jurídica.

    Esta coluna poderia se encerrar com o desejo sincero de felicidade ao leitor durante o longo período de tempo que o planeta consumirá para completar uma nova volta em torno da estrela central do Sistema Solar ou com um simples feliz ano novo. É questão de escolha.

    lfcarvalhofilho@uol.com.br

    luís francisco carvalho filho

    É advogado criminal. Foi presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95. Escreve aos sábados,
    a cada duas semanas.

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