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    Luiz Horta

    Desventuras de um padeiro amador

    28/08/2016 02h00

    Fernando Sciarra/Folhapress
    Luiz Horta prepara pão
    Luiz Horta prepara pão

    Nem só de pão vive o homem, ele também alimenta seu levain e assa a fornada. Virou mania, até eu caí nesta, pensando na criatura que estava na geladeira e precisava ser revigorada com periodicidade, um tamagochi (alguém ainda se lembra do bichinho virtual?) com fome de trigo e sede de água.

    Já tive bichos de estimação, tartaruga e muitos gatos pela vida afora —uma grande gata, a Frederica, que ainda me dá saudades. Foi a primeira vez que ganhei um levedo como mascote.

    São outras responsabilidades, não tem que levar no pet shop nem para dar um voltinha no quarteirão, mas ele é exigente.

    Fiquei entusiasmado, minha comida favorita é pão, e o levain me daria a chance de ter meu próprio produto semanal, fabriqueta de um homem e de um dia só.

    Na primeira tentativa, não cresceu. Produzi quatro notáveis paralelepípedos, rochas mesmo, que meu companheiro educadamente elogiou —embora as pedras de trigo permanecessem intactas na pia da cozinha conforme os dias passavam. Um dia, joguei tudo fora.

    Fiz uma segunda tentativa. Este ficou cheiroso, saboroso, macio e com a casca crocante. Só que tinha a aparência de um peru assado —ou seja, além de padeiro, é preciso ser ceramista, lidar com as formas. Chamei de pão contemporâneo e fingi que tinha dado certo.

    Na terceira vez deu tudo errado. O tempo tinha esfriado, e era preciso uma longa fermentação, me explicou a minha vizinha padeira, a Beth Viveiros da (Beth) Bakery. Assei errado também, ficou cru por dentro. Insisti, decidi que ia "virar pudim de pão" —a essa altura, tinha pães velhos suficientes para abrir uma Loja do Pudim de Pão. Foi para o saco, de verdade, o das experiências fracassadas que um dia serão reaproveitadas (ouço uma vozinha dizendo: "Nunca").

    O quarto foi o melhor, ficou gostoso e com formato quase parecido com o de um grande pão italiano. Fotogênico, brilhou com muitos likes no meu Instagram. Mas tinha esquecido do sal, deu para comer, sem grandes vantagens.

    Meu espírito forte e tenacidade estavam começando a fraquejar. O fermento, apelidado de Bernie, me olhava com cara de preocupação na geladeira. Finalmente admiti: a experiência tinha terminado. Resolvi ser direto com ele, explicar que a culpa era minha e não dele, ter a DR final e desistir.

    Abri seu vidro e tinha ficado cinza, mofado —desistiu de mim primeiro. Aceitei meu fracasso, talvez eu tenha outro gato. Enquanto penso, peço licença para alimentar Kemal, o kefir, este sim bacana, faz um litro de coalhada sem pedir muita atenção. Sou um ex-padeiro que faz iogurte caseiro.

    *

    O princípio do levedo
    O levain é um levedo natural. Alguns, centenários, passam de mão em mão e produzem pães com toque acidinho. Tem personalidade e é suscetível ao clima, com alguns caprichos e exigências. Ganhei o meu de um amigo. É fácil ter um, quem faz pão gosta de compartilhar a matriz, contar a história do seu levain, colecionar diferentes, de origens variadas. Quando entrei no vórtice da levedação caseira, procurei a Escola do Rogério Shimura, principal origem de novos padeiros, profissionais e amadores, da cidade. Não consegui ir a nenhuma aula (não sou muito disciplinado, como se vê aí ao lado). Consultei o livro do Luiz Américo Camargo ("O Pão Nosso") e me virei a partir dele.

    *

    O kefir
    Se o levain já é um pouco misterioso, o kefir chegou causando estranheza. Ganhei uma colher de sopa de algo parecido a bolinhas opacas de sagu -para colocar no leite e, quase mágica, ter um saboroso leite fermentado. Pesquisei, é uma colônia de lactobacilos, uma das mais antigas culturas de leite conhecidas. São rápidos, em uma noite transformam um litro de leite em algo semelhante a iogurte (a diferença é mais microbiológica que no gosto e textura). Ganham do levain por não serem tão cheios de vontades: o leite pode ser qualquer um e vai na temperatura em que está. Até agora não mostraram preguiça nem parece que vão desistir. Tudo vai bem.

    *

    VINHOS DA SEMANA
    (1) Dolcetto d'Alba Tre Vigne Vietti 2012, Inovini (R$ 145)*
    (2) Pigmentum Cahors 2012 Vigouroux, Vinci Vinhos (R$ 95)*
    (3) El Bar Argentino Tempranillo-Malbec Zuccardi 2015, Ravin (R$ 56)*
    (4) Fausto Tannat Pizzato 2014, Pão de Açúcar (R$ 49)*

    * valores de referência

    luiz horta

    Viajante crônico e autor dos livros eletrônicos 'As Crônicas Mundanas de Glupt!' e 'Vinhos que cabem no seu bolso'. Escreve aos domingos.

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