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    Luiz Horta

    O vinho vai virar sertão

    04/09/2016 02h00

    Camila Svenson/Folhapress
    São Paulo, SP, 30.08.2016; Pote de Paçoca, carne de sol na chapa com queijo coalho assado e macaxeira no restaurante Jesuíno Brilhante (Camila Svenson/Folhapress)
    Pote de Paçoca, carne de sol na chapa com queijo coalho assado e macaxeira do Jesuíno Brilhante

    "Como vou contar, e o senhor sentir em meu estado? O senhor sobrenasceu lá? O senhor mordeu aquilo?"perguntava o jagunço em "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Senti o mesmo, não nasci lá, não tinha mordido aquela comida, como descrever? O Brazil não mordeu o Brasil, ainda não, está só começando.

    A comida está me ensinando que há vários sertões, cada um com seu estilo. O sertão mineiro (o do Rosa), o baiano, o pernambucano, que aprendi com o restaurante Mocotó, e agora o potiguar, do Seridó, no Jesuíno Brilhante. Em comum, os sertões têm as carnes curadas no sal ou no sol, os farnéis de farinha, a paçoca –coisas que viajam e que aguentam sem geladeira. Mas cada um tem suas receitas.

    Passei uma tarde com Rodrigo Levino, à frente do Jesuíno. Vinho pareceu desnecessário ali, a comida e a bebida estão num sistema completo e feliz, embora Rodrigo seja um fã da uva fermentada. Levei minhas garrafas (não cobram serviço de rolha) para ver como funcionavam com a comida, que é poderosa, alimentícia, mas de delicadezas e sutilezas muito amáveis. O sertanejo é, antes de tudo, um bom de garfo.

    Rodrigo ia pontuando as diferenças do Brasil sertanejo para o resto: não tem salada. As pessoas reclamam, mas tem só tomate, e é um vinagrete. O forte é a carne: "Não gosto da salga intensa, desidrata demais, prefiro uma carne feita na sombra, durante a noite, doze horas bastam, fica macia", explicava seu pai, docemente.

    Tem a maravilhosa carne de sol com nata (que vem do Rio Grande do Norte, não é nata tal qual, mas uma pré-manteiga) e a de copa lombo (e vem aí uma de cupim, que está em testes). Paçoca é uma das coisas que não consigo parar de comer, estava perfeita.

    Os vinhos foram um acerto: um Bordeaux macio, que foi bem com tudo, e um Riesling que agradou ao Rodrigo ("acho que Riesling e porco vão muito bem, viajei o Reno todo provando vinhos", disse o potiguar internacional).

    Encontrei ali um confrade, defendo e tenho como missão fazer as pessoas provarem carne de porco branquinha com Riesling, percebo nos dois um ponto de adocicado que combina perfeitamente.
    As sobremesas me pegaram sem garrafas, não pensei nelas, quebra-queixo, bolo de melado, passa de caju (falo aí ao lado).

    O sertão já virou vinho uma vez, com a produção do Vale do São Francisco. O vinho vai virar sertão? Não sei. Como diria o Rosa, precisar de precisão, precisa não, mas sempre é um bom encontro.

    Começo aqui minha jornada pelos regionalismos, quero ir aos restaurantes de cozinha brasileira com garrafas na mão.

    JESUÍNO BRILHANTE
    Onde r. Arruda Alvim, 180, Pinheiros
    Quando de seg. a sáb., das 12h às 15h

    Camila Svenson/Folhapress
    São Paulo, SP, 30.08.2016; Pote de Paçoca, carne de sol na chapa com queijo coalho assado e macaxeira no restaurante Jesuíno Brilhante (Camila Svenson/Folhapress)
    Rodrigo, rei do sertão potiguar

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    Loire do Sertão
    Este vinho ainda não existe, talvez nunca seja possível, o clima do Vale do Loire, na França, é o oposto do Vale do São Francisco. Mas quem resiste a um trocadilho? Na hora dos vinhos para a comida do Jesuíno, fiquei dividido. Um espumante rosé feito de uva Grenache em pleno sertão pareceu uma boa escolha, além de ser bem gostoso. Um italiano diferente, o San Marzano, da uva Primitivo, feito em Puglia, lugar próximo de um sertão italiano, lá nos confins do sul, iria bem com...os doces! A potência da rapadura abraçaria este vinho intenso. O Trebbiolo é só equilíbrio, boa escolha para as carnes. E o Riesling... dele quero falar um pouco mais. Ainda vivemos a maldição da garrafa azul, que destruiu os vinhos alemães para gerações. Riesling é uma das uvas mais espetaculares, funciona nos secos, nos doces, envelhece bem, e, no caso dos alemães, costuma ter teor alcoólico baixo e acompanhar dezenas de pratos –minha escolha é com porco. Esqueça suas restrições moldadas pela água com açúcar do passado, acredite nos vinhos alemães.

    A vendinha
    Um canto do Jesuíno Brilhante tem uma prateleira cheia de produtos regionais. Biscoitos, doces e a carne de sol para levar. Escolhi o caju em calda com castanha, uma compota totalmente fora do meu mundo. Fiz uma boa escolha: o caju meio murchado, com aquele indescritível trava-boca da fruta, mais o crocante das castanhas é um encontro notável.

    *

    Vinhos Da Semana *
    (1) Trebbiolo Rosso La Stoppa, Piovino (R$ 134). (2) RK Riesling, Vind'Ame (R$ 129). (3) San Marzano Il Pumo Primitivo, Grand Cru (R$ 73). (4) Terranova Brut Rosé, Miolo (R$ 39).

    * valores de referência

    luiz horta

    Viajante crônico e autor dos livros eletrônicos 'As Crônicas Mundanas de Glupt!' e 'Vinhos que cabem no seu bolso'. Escreve aos domingos.

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