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    Luiz Horta

    Na cozinha brasileira contemporânea, o sommelier tem que rebolar

    06/11/2016 02h00

    Felipe Gabriel/Folhapress
    SÃO PAULO, SP, BRASIL, 01-11-2016, Fotos Restaurante Tuju Sequilho de Carimã, iorgute de casa, conserva de bulbo de erva-doce e ovas de truta (Foto Felipe Gabriel/Projetor/Folhapress)
    Sequilho de Carimã, iogurte, conserva de erva-doce e ovas de truta

    O sommelier contemporâneo é um músico da improvisação. Na cozinha clássica, as cartas estão visíveis, há regras longamente definidas: com foie gras vai um Sauternes; com a carne, pode ser um Bordeaux. Harmonizações assim são fáceis, estão nos livros, ou basta dar um Google. Mas num menu de 15 pratos, em que a cozinha brasileira é revirada do avesso, com ingredientes estranhos ao vinho —como tucupi preto, cajuína, feijão-manteiguinha— aparecendo em pratos de sabores delicados, porém decididos, o sommelier tem que rebolar.

    Adiu Bastos, do Tuju, parece relaxado, tem bom repertório e tem a cumplicidade do chef Ivan Ralston. A complexa esgrima jogada por eles, sem regras pré-estabelecidas, é admirável de assistir e consumir.

    Felipe Gabriel/Folhapress
    SÃO PAULO, SP, BRASIL, 01-11-2016, Fotos Restaurante Tuju Tapioca de foie gras, cambuci e especiarias brasileiras (Foto Felipe Gabriel/Projetor/Folhapress)
    Tapioca de foie gras com cambuci e especiarias brasileiras

    O prazer do menu-degustação tão longo —coisa que ando evitando, mas que lá funciona lindamente— não veio só da qualidade criativa da comida (que é alta), mas da desenvoltura da jam session entre estes dois. Ralston, no piano, dá os temas, Bastos, no baixo, acompanha e inventa. Foi assim o tempo todo. Uma boa demonstração de que vinho e comida sempre chegam a um acordo, basta um bom negociador entre eles.

    Cozinha brasileira continua sendo uma dúvida para os vinhos, uma pesquisa em andamento (eterno?). Nunca me perguntem o que beber com feijoada, por favor —a resposta é "não sei". Tem coisas que já testei e são ótimas, peixes amazônicos com vinhos da Rioja com muito tempo de garrafa, como os classificados como Gran Reserva. Tondonia e tambaqui, por exemplo.

    Ivan Ralston é discreto, recolhido. Aparece na mesa, como faz René Redzepi no Noma, trazendo um ou outro prato, e sussurra seu nome, num estilo minimalista de presença (não tem dólmã de chef, está vestido como os demais cozinheiros, que chegam a 30 operando numa noite).

    Mas ele não é tão contido na hora de inventar, é fulgurante na criação. O estilo é implosivo: minha mesa era de frente para a cozinha aberta e não ouvi um ruído, não vi um movimento brusco. O que saia de lá, no entanto, era nitroglicerina gastronômica: pratos com gosto, sabor,
    bons de comer e completamente inovadores.
    Na minha frente, no balcão, uma cozinheira se ocupou a noite inteira de, com uma pinça, depositar folhas, ervas, raminhos, sobre os pratos finalizados. Não tem a bateção de panelas do estilo Ratatouille, é um local cerebral. A cozinha de Ralston entra no que apelidei de pós-Adrià: é tributária daquela, mas transcendeu o circense e recuperou o prazer de comer bem.

    Felipe Gabriel/Folhapress
    SÃO PAULO, SP, BRASIL, 01-11-2016, Fotos Restaurante Tuju Carpaccio de garoupa, ervilha, leite de ovelha e taioba (Foto Felipe Gabriel/Projetor/Folhapress)
    Carpaccio de garoupa, ervilha, leite de ovelha e taioba

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    Vinhos da semana
    (1) Jerez Lustau Palo Cortado R$ 263 (Ravin) (2) Jerez Amontillado La Botaina R$ 182 (Vinci). (3) Chateau Moulin Caresse Magied'Automne R$ 79 (Delacroix). (4) Madeira Justino's 3 anos doce R$ 65 (Casa Flora).

    * valores de referência

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    Ping-pong vertiginoso

    Adiu Bastos aparece com garrafa na mão, pouco depois de cada prato ser trazido para a mesa. Cabe a ele, sommelier, rebater as bolas extremamente bem colocadas no seu campo por Ralston.

    Meus pratos favoritos foram o sequilho de carimã, iogurte, conserva de erva-doce e ovas de truta; a tapioca de foie gras com cambuci e especiarias brasileiras; e o tutano no missô de castanha -portuguesa e pão de castanha-do-pará. E o tal tucupi preto, com peixe, caldo de moqueca e tubérculos. Ah, o carpaccio de garoupa, ervilha, leite de ovelha e taioba, este foi demais.

    Nas sobremesas, a panna cotta com calda de jabuticaba, pitaia, mirtilo, pinhão tostado e sorvete de formiga. E um macaron de chimarrão com o café, que era pequeno e marcante. Tucupi, pitaia, taioba? Isto faria qualquer um tremer! E Bastos nem aí. Tem na carta uma lista de jerezes (que sonho!), brancos do Jura, ótimo Riesling alemão. Ele cultiva os fortificados: "é o esforço de trazer para a mesa vinhos que tinham sido banidos para a cozinha" e nomeia Marsala, Madeira, Porto, Jerez.

    Incluiu duas boas cervejas (uma delas de gengibre, feita na casa). Se eu tivesse que achar um tema recorrente em tudo o que bebi, seria a sempre refrescante acidez, presente em todos os líquidos. Acidez, que muita gente vai ler franzindo a testa, é a alma dos vinhos, o que mata a sede.

    luiz horta

    Viajante crônico e autor dos livros eletrônicos 'As Crônicas Mundanas de Glupt!' e 'Vinhos que cabem no seu bolso'. Escreve aos domingos.

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