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    Luiz Horta

    Por que comer os clássicos?

    15/10/2017 02h00

    Tadeu Brunelli/Divulgação
    Rins de vitela ao molho de vinho beaujolais, do La Casserole
    Rins de vitela ao molho de vinho beaujolais, do La Casserole

    Estou parafraseando, sem pudor, o título de um ensaio de Italo Calvino sobre a literatura. Ele se pergunta "o que é um clássico?". Uma obra que é relida sempre, através de gerações? É a resposta fácil. Leia Shakespeare, "Ricardo 3º" por exemplo, e estão lá elementos de vilania, traição, maldade e alguma redenção que podemos enxergar em todas as épocas (dos poderosos de toda parte a Frank Underwood).

    Mas e receitas? Cada um tem sua lista e a palavra virou um conceito ônibus, cabe tudo. Eu acho farofa, salpicão e frango assado os classicões domingueiros. Mas tente falar sobre o assunto e o consenso some. Hoje, nas mesas mais gastroengajadas se briga mais por causa de negroni e carbonara que por política ou futebol, que eram os assuntos tabus da vida toda. Cada discussão que eu olho e desacredito: estão mesmo batendo boca a respeito de um macarrão e um drinque? Estão.

    Quando me mudei para a cidade, estavam estabelecidos o que eram os clássicos paulistanos, o bauru do Ponto Chic, a pizza da Castelões, a feijoada do Bolinha e o polpetone do Jardim di Napoli. A lista é maior, não vou me esforçar em lembrar todos. Levei muito tempo para poder comer o polpetone (razões autobiográficas de falta de dinheiro). E quando consegui, bela decepção. Era seco, sem sabor, caro.

    Foi ali que comecei a pensar sobre a fama de pratos, eles têm em comum serem indiscutíveis, apesar de sofrerem, como tudo mais, altos e baixos. Eu estreei no prato num período de baixa total, mas toda vez que dizia ter detestado a comida, quase era expulso da cidade, quebrando um pacto de polidez, lesando o patrimônio gastronômico da sociedade.

    O tempo escorreu, esqueci do assunto. Voltei esse ano a comer polpetone. E tudo mudou, estava reluzente, saboroso, com um molho de tomates brilhante, farto recheio, um clássico no final das contas.

    Clássicos são as receitas de outra época, que continuam nos cardápios, mesmo que em mudança constante, pois os produtos, os cozinheiros e os clientes mudam. Saem da esfera do julgamento, ganham uma atemporalidade, são anacrônicas no sabor, enormes, sem vergonha alguma de serem alimentícias, fartas, operísticas. Ocupam o prato e a alma e não importa se estão na melhor fase, continuam no panteão.

    O La Casserole é unanimidade, uma das poucas que sobram. Atravessou vários desertos, o de altos e baixos na cozinha, o da impenetrabilidade da região. Lembro de descer do táxi quase escoltado para entrar no salão. Como não sou crítico, nem historiador, mas apenas um apetite diletante, continuei indo lá, apesar de sentir tristeza quando os pratos não brilhavam.

    Fui para a coluna, recentemente, e me lembrei de um frase do especialista em vinhos inglês, sir Hugh Johnson. Nas suas memórias, um dos melhores livros sobre vinhos, pois não fala nada de taninos e leveduras e tudo de sua vida de hedonista, num momento, ele bebe um vinho do Porto excelente e suspira: "toda vez que tomo Porto lamento não fazê-lo com mais frequência".

    Foi o que se passou comigo no La Casserole, comi tão bem que fiquei chateado por não ir lá comer uma vez por semana comer.

    Gosto muito do mais famoso prato da casa, o gigot d'agneau com feijões brancos, que estava uma perfeição. Só que não resisto ao convite do "submundo" da cozinha, a dobradinha e os rins. A primeira, as "tripes" são uma velha paixão, é a gaita de foles da comida, não tem meio termo, e a maioria detesta. Comida com textura, aqueles gomos como favos de mel e a parte que desfia como peito de frango, mais o sabor intenso. Quando bem executada é escolha imediata, no jantar mesmo, não é pesado e estômago não tem relógio. Mas dobradinha há em outros lugares, prato igualmente português e muito adaptado ao Brasil.

    Já os rins... excessivamente tratados, parecem uma esponja sem sabor. No modo contrário, mais ao gosto andaluz, bem, não vou ser indelicado dizendo, dá para imaginar como ficam. Na minha vida de onívoro só tenho duas coisas que não consigo ingerir, cartilagem de frango e "andouillette". Andouillette (linguiça feita com intestino de porco) sofre do mesmo problema dos rins: se tem o gosto do que é, não dá.

    Os rins ao molho beaujolais, na verdade um denso molho de vinho, com batatas do Casserole são um clássico.

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    La Casserole. Largo do Arouche, 346, República, tel. 3331-6283

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    Vinhos da Semana

    Reprodução
    Château des Hartes R$98,18 (Ravin)La Violette Syrah R$93,50 (Decanter)Moulin de Gassac Syrah R$80,92 (Mistral)Château Beaubois R$62 (Delacroix)_____________________

    Château de Hartes R$ 98,8 (Ravin)

    La Violette Syrah R$ 93,50 (Decanter)

    Moulin de Gassac Syrah R$ 80,92 (Mistral)

    Château de Beaubois R$ 62 (Delacroix)

    *Valores de referência

    luiz horta

    Viajante crônico e autor dos livros eletrônicos 'As Crônicas Mundanas de Glupt!' e 'Vinhos que cabem no seu bolso'. Escreve aos domingos.

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