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    Luiz Caversan

    As drogas e a guerra perdida

    25/05/2013 15h12

    A recente decisão do governo do Estado de São Paulo de destinar uma quantia em dinheiro para que usuários de crack possam ter recursos para tentar abandonar o vício está gerando muita polêmica, e o programa até já recebeu alcunha de "bolsa crack".

    Há muito o que se discutir a respeito desta medida, mesmo sob a perspectiva de quem acredita que as atuais políticas de combate a drogas não surtem efeito, alimentam ainda mais o tráfico e acabam criminalizando quem na maioria dos casos não deveria ser tratado como criminoso.

    Mas o que este debate esconde é algo mais profundo, qual seja, o fato de o Brasil ainda continuar na velha e antiquada linha de combate ao usuário: permanece atacando o doente em vez de combater a doença.

    E ao que tudo indica o principal Estado e principal cidade do país consolidam esta linha de atuação, conforme ficou claro na participação do psiquiatra Ronaldo Laranjeira no programa Roda-Vida (TV Cultura) da última segunda-feira.

    Laranjeira, porta-voz de tudo o que se refere a drogas na Universidade Federal de São Paulo, agora também é responsável pela aplicação do programa do governo do Estado em que a tal "bolsa crack" se inclui e ainda por um outro programa referência da prefeitura paulistana, no populoso hospital Heliópolis.

    Esta atuação em esferas tão abrangentes não é suficiente, porém, para que o médico tenha uma visão no mínimo mais holística do tema. Durante todo o programa da Cultura, embora confrontado com dados e informações relevantes, ele insistiu que a única maneira de se enfrentar a questão das drogas é assim mesmo, à sua maneira: atacando o usuário pela via da abstenção total, sem distinção de que tipo de droga use, como usa e em quais situações. É proibido e faz mal. Ponto.

    Ao longo do programa o especialista ficou visivelmente contrariado todas as vezes em que se colocou a questão da redução de danos, em contraponto à criminalização, como política viável para enfrentar o problema.

    Redução de danos é um conjunto de ações, inclusive de políticas públicas, segundo o qual quem usa drogas não é tratado como criminoso, mas, quando é o caso, como alguém que precisa de ajuda para diminuir os males que eventualmente cause a si e aos outros por causa da ingestão de substâncias ilícitas. Gasta-se mais, também, em prevenção, educação, esclarecimentos do que em repressão e controle policial.

    Estas práticas permitem por exemplo que, por não ser considerado um criminoso e portanto não correr o risco de ser preso, um número muito maior de usuários com problemas busque ajuda de verdade em centros especializados.

    Mesmo que esteja sendo aplicado com êxito em países como Holanda, Alemanha, Suíça, Espanha, Noruega, Dinamarca, Canadá e Austrália, este tipo de postura é desprezado por Laranjeira, que é intransigente ao defender sua linha proibicionista, afirmando genericamente que a política de redução de danos está sendo "abandonada" em todo o mundo.

    Exemplo concreto de que não é bem assim foi apresentado no programa por Ilona Szabó, da Comissão Global de Política Sobre Drogas, órgão da ONU comandado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que busca alternativas à fracassada "guerra" empreendida por diversos países liderados pelos EUA. Trata-se do caso de Portugal, que em 2001 se transformou no primeiro país europeu a descriminalizar a posse e uso de qualquer tipo de droga.

    Para Laranjeira, este exemplo não é válido porque segundo ele disse "o consumo aumentou no país".

    O que também não é bem assim, porque o que ele não disse é que o consumo em Portugal, cujo governo considera seu programa um êxito, não aumentou mais do que qualquer outro país da Europa. E que desde a liberalização houve uma queda acentuada da criminalidade relacionada a drogas e tráfico, bem como uma enorme diminuição, de mais de 50%, dos casos de mortes relacionadas a consumo de drogas. Ou seja concretamente: redução de danos.

    Outra afirmação feita por Laranjeira que surpreendeu os participantes do programa refere-se ao Estado americano do Colorado. Numa demonstração de que até mesmo os Estados Unidos estão mudando sua visão em relação ao tema, a população daquele Estado aprovou a liberação do uso recreativo de maconha para maiores de 21 anos. Questionado sobre a validade desta medida num país radical no combate às drogas, Laranjeira afirmou ser contra porque ela significou "aumento de 25% do consumo".

    Acontece que o referendo que liberou o uso da maconha e até mesmo o plantio doméstico em pequena escala foi realizado no Colorado em novembro do ano passado, ou seja, há apenas seis meses. E não são conhecidos, até o momento, dados oficiais que permitam afirmar que o consumo aumentou ou que diminuiu.

    Estes dois exemplos são reveladores de uma postura, externada ao durante todo o programa, que só admite mão única nesta questão: proibir, combater e tentar a todo custo eliminar o uso, nem que seja à força. Possibilidades alternativas não são consideradas.

    Tudo bem que esta seja a visão pessoal de Laranjeira como médico e que ele a aplique em seus pacientes, que podem ou não aceitar isso. Mas é uma pena seja esta a política a prevalecer de forma hegemônica, com sua liderança, em São Paulo Estado e capital para ser aplicada compulsoriamente a todos os cidadãos.

    Mesmo porque há cada vez mais evidências, e até alguém como Fernando Henrique Cardoso não cansa de repetir isso, de que combater drogas desta maneira (tratamento escudado por polícia, armas e prisão em vez de educação, esclarecimento e apoio) não tem funcionado e, pior, serve para alimentar toda uma cadeia "do mal" decorrente do fato de ser algo valioso, proibido e criminoso, a saber: tráfico, violência, mortes.

    luiz caversan

    Escreveu até abril de 2016

    É jornalista e consultor na área de comunicação corporativa.

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