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    Luiz Caversan

    Somos 34,9%, com orgulho

    29/03/2014 03h00

    Então quer dizer que é assim: o camarada chega na praia de Ipanema, por exemplo. Aquela abundância, a mulherada toda quase nua, glúteos minimamente protegidos, seios se insinuando para todos os lados. O sujeito avalia bem a situação, escolhe aquela que mais lhe apetece e mete a mão, com a intenção de ir além disso. Afinal, se a dona vai a público praticamente nua é porque está se oferecendo ao primeiro que se aventurar, certo?

    Não, não é assim.

    Da mesma forma que não é assim: a moça que entra no metrô de minissaia não pode ser "encoxada", nem aquela outra no ponto do ônibus usando uma blusa de alcinha pode ser bolinada só porque seu corpo é provocante, tampouco a sensualidade que exala de tantas de nossas meninas está disponível ao desfrute de qualquer um.

    Até ontem parecia impensável que a esta altura do campeonato, de qualquer campeonato, seria preciso gastar o português para reafirmar princípios tão elementares da vida civilizada: não pode haver contato físico sem consentimento. Ponto.

    Mas, como ficamos sabendo por conta de uma inusitada pesquisa realizada em 2013 pelo respeitável Ipea (que, em geral, cuida de dados econômicos...), e divulgada agora, nada menos que 65,1% de um universo de quase 4 mil entrevistados acham que é assim, sim: mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas. Mulheres, inclusive, acham isso...

    Idade da Pedra total, só falta o porrete e a caverna para onde arrastar a fêmea feliz? Não, século 21, país com quase todo mundo conectado, mais smartphones per capita do que a maioria dos demais países do planeta.

    Desanimador...

    O que dizer às mulheres que concordam com isso?

    Será que os pesquisadores ouviram somente aquelas mulheres que, segundo uma amiga minha, são "invisíveis", porque ficaram velhas ou feias ou gordas ou sem o apelo sexual padrão e desenvolveram uma amargura deletéria porque perderam toda a autoestima? Não, meus respeitos às mulheres maduras e cujos corpos teimam em ser normais, assim como elas, essas mulheres, são admiravelmente normais.

    Não quero saber dos homens babacas que responderam à pesquisa, esses são óbvios. Mas sim dessas mulheres que admitem a violência, o assédio, o estupro. Terão filhas, irmãs, amigas que merecem ser estupradas, segundo seu juízo tão arrogante quanto autoritário?

    Arrogante porque se dá o direito de julgar o comportamento alheio. Autoritário porque quer punir drasticamente aquelas que segundo seus padrões toscos têm desvio de comportamento ou simplesmente incomodam.

    Desalento.

    Desalento porque tem gente que é idiota demais para entender que ser vulgar, exibida ou provocante, que seja, é uma questão de ponto de vista, a vulgaridade pode estar no olhar de quem julga –e, em geral, está.

    Mas danem-se esses boçais, porque o mais importante é o seguinte: mesmo que o objetivo de uma mulher seja ser vulgar, mesmo que ela seja vulgar por qualquer critério, seja provocante e/ou transgressora, esse é um direito dela, não um salvo-conduto para que qualquer homem possa extravasar sua devassidão.

    O que dizer de quem apenas se veste como quer, porque quer e sem querer provocar ninguém? Ora, bolas...

    O que choca mais nestes 65,1% de ignorância é que isto ocorre num momento de conscientização, evolução e conquistas talvez nunca vistos na sociedade. A intolerância, a homofobia, a truculência e o medo do que é diferente nunca estiveram tão acuados pelos modernos instrumentos de comunicação.

    Talvez por isso mesmo que ali, no anonimato da pesquisa de opinião encontremos esses estertores obtusos, medievais. Mais que indignação talvez seja o caso de piedade.

    E de louvar os 34,9% que repudiam essa loucura toda, já se movimentando em ações nas redes sociais, como #eunãomereçoserestuprada, #ninguemmerece, #estuproecrime, #meucorpomepertence e outras mais que surgirão...

    luiz caversan

    Escreveu até abril de 2016

    É jornalista e consultor na área de comunicação corporativa.

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