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    Luiz Caversan

    Dentista caçador é caçado na internet

    01/08/2015 02h00

    "Não houvesse se caçado, Hemingway faria 100 anos". Com este título no mínimo inusitado, a Folha noticiava em 21 de julho de 1999 que, se não tivesse estourado os miolos e tudo o mais que envolvia sua massa encefálica usando para tanto uma carabina de caça de dois canos, o escritor norte-americano Ernest Hemingway estaria completando, naquele dia, seu centenário.

    Ok, o próprio texto, de autoria do brilhante jornalista Cassiano Ele Machado, lembrou que, por ser quem era e foi ao longo de toda a vida (beberrão, briguento, instável), dificilmente o autor de "O Velho e o Mar" e "Por Quem os Sinos Dobram" teria chegado a idade tão provecta.

    Mas a efeméride não poderia passar em branco, e, dentre diversas passagens da vida do escritor, Cassiano lembrou que a iniciativa de atirar contra sua própria cabeça deu-se com total êxito sobretudo porque Hemingway foi um exímio caçador. Tiro certo.

    A imagem do grande escritor e sua carreira de predador (há fotos dele ao lado de inúmeros bichos abatidos, como elefantes, leopardos e leões) veio à mente por conta de outro leão, Cecil, animal simbólico e protegido do Zimbabwe, ele também eliminado mas não por um ficcionista brilhante, ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1954 e que praticava sua atividade deletéria em épocas outras, quando matar um leão na África não era o fim do mundo.

    Não, apesar de viver num parque nacional e com um colar com GPS, Cecil foi morto por um dentista norte-americano, Walter James Palmer, no início de julho, durante uma "caçada selvagem com arco", ou seja, a flechadas, uma das mais rudimentares formas de se caçar animais.

    No entanto, bastou que o autor desta façanha fosse identificado - "Pensei que era uma caçada legal", justificou-se - para que surgissem diversas outras fotos suas, sempre ao lado de carcaças de animais por ele recém-mortos: um rinoceronte, um outro felino, uma espécie de búfalo, um alce...

    Ou seja, o homem é um matador convicto e renitente.

    Pelas suas declarações, é evidente que ele no entanto se encontra a muitas léguas da personalidade conturbada do famoso escritor, cuja metáfora literária maior é a luta do velho pescador contra as forças da natureza que lhe tolhem o resultado do seu trabalho árduo, remetendo ao eterno enfrentamento do homem contra o mundo.

    Por ser quem era e ter as angústias que tinha, Hemingway, que matava animais, matou-se como um deles.

    Por ser quem é e viver no mundo em que vive -imediato, imagético, midiático -, o dentista-matador não precisará se matar (certamente nunca pensou nem pensará nisso), porque já está sendo esfolado vivo, ao vivo e online: seu nome, foto, endereços, sua clínica, os nomes de seus pacientes viralizaram na internet e ele é hoje um acossado, está escondido, impedido de trabalhar, acuado.

    Mas deverá sobreviver, ao contrário dos bichos que abateu. É só esperar pra ver: logo logo surgirá em seu apoio um monte de gente que, assim como ele, não acha o fim do mundo matar um leão a flechadas em pleno século 21...

    *

    Ainda como rescaldo da passagem pelo Uruguai, relatada aqui semana passada, mais algumas informações sobre a liberação da maconha no país.

    Inclusive para esclarecer dúvida de leitores, é importante ressaltar que a maior parte da droga que circula no país hoje ainda é, sim, comercializada ilegalmente, pelo tráfico. O processo de seleção das empresas que farão o plantio oficial para posterior comércio também oficial via rede de farmácias ainda está em curso, mas demora um pouco. O produto será vendido em farmácias porque o governo uruguaio tirou a droga da esfera criminal e a colocou no âmbito da saúde pública e da redução de danos.

    Por enquanto, a droga de qualidade aferida, com consumidores legalizados, somente aquela proveniente do plantio doméstico (seis pés por cidadão) ou dos clubes que reúnem produtores e usuários.

    Quem quer comprar na rua tem de se submeter ao velho esquema de sempre, colocando a saúde em risco por conta dos produtos químicos tradicionalmente adicionados à maconha prensada contrabandeada do Paraguai.

    luiz caversan

    Escreveu até abril de 2016

    É jornalista e consultor na área de comunicação corporativa.

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