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    Luiz Caversan

    Hoje eu enterrei minha irmã

    15/08/2015 02h00

    Hoje eu enterrei minha irmã.

    Literalmente.

    Minha irmã mais velha morreu aos 73 anos.

    Relativamente nova para os dias de hoje.

    Mas, não, ela estava doente, acabada, com o coração trabalhando insuficientemente e os pulmões detonados pelo cigarro.

    Mas não culpo o cigarro apenas, em seis anos ela perdeu o marido e o filho, e isso acabou com ela; sucumbiu ao peso da própria existência.

    O coração pifou e o pulmão empurrou para baixo, cada vez mais. Para o túmulo.

    Ela morreu em casa, dormindo, o passamento foi constatado pela acompanhante às 7h, mas deve ter ocorrido duas horas antes, sem choro e sem esgares.

    Eu cheguei à casa dela por volta das 10h e a vi na cama, o rictus cadavérico implacável: não era mais minha irmã que um dia foi linda e charmosa, sorriso largo e cativante de morena jambo. Era um trapinho de gente que estava ali, pele sobre osso, rosto retorcido.

    Eu e uma prima querida cuidamos da burocracia, infernal, chama médico, liga pra funerária, vai pro cartório, não é naquele (a morte tem jurisdição...), vai pro outro, paga taxa na prefeitura, funcionários indolentes, marca cemitério...

    Eu não queria de jeito nenhum velório a noite toda, um absurdo inventado no tempo em que se precisava ter certeza de que o morto estava morto e ficava todo mundo velando. Hoje isso é um castigo e uma tortura para os familiares, como ela morreu por volta das 5h seria possível sepultar às 17h.

    Mas era preciso correr com a documentação e os procedimentos todos para dar tempo. E corrermos e arrumamos papel e pagamos taxas exorbitantes (R$ 987 pelo "aluguel" de um buraco na terra por três anos num terreno municipal...) e mais caixão e isso e aquilo.

    Quando tudo estava resolvido e finalmente a funerária poderia recolher o corpo, não daria mais tempo para preparar o féretro no local adequado.

    Nós mesmos tivemos, com toda a dificuldade e com a emoção imaginável, de trocar sua roupa na cama em que morreu e colocar o corpo no caixão, eu, sobrinho, primas, a outra irmã, todos uns anjos.

    Tudo isso para correr para o cemitério, onde ela baixou à sepultura no último minuto do tempo permitido pela lei. Nem deu tempo para flores.

    Como disse, minha irmã Ivone já estava muito doente, e cinco meses atrás ficamos sabendo que sua morte era questão de (pouco) tempo, ainda mais que ela, apesar de tudo, continuava fumando um maço de cigarros por dia, não conseguiu diminuir de jeito nenhum, quanto mais parar.

    Não foi inesperado, mas com a função toda deste dia nem deu tempo para muita reflexão.

    Agora, passadas poucas horas disso tudo, senti a necessidade do desabafo: enterrei a minha irmã, caramba!

    Não era mais a irmã, esta já tinha ido embora em parte quando o marido morreu seis anos atrás, o restante quando o filho sucumbiu ao alcoolismo três anos depois; não sei como ela ainda conseguiu sobreviver por três anos com, sei lá, 0,5% de energia que lhe restava...

    Ao longo de todo o périplo de hoje lembrei de todos os momentos bons e ruins que compartilhamos, mais ruins do que bons na idade adulta, mais bons do que ruins na infância, da qual recordei com emoção.

    Qual o resumo disso tudo?

    Bem, fiz o que deveria ser feito.

    Ponto.

    E é assim que a vida se me apresentou hoje: crua, implacável, devastadora, burocrática, feia e triste.

    Mas ela não é só isso, e vendo cara a cara o fim que nos espera ali no rosto macilento de minha irmã, mais do que nunca ele, o fim, pareceu justificar os meios.

    Há que se viver muito, bem, intensamente, honestamente, amorosamente antes de virar pó.

    Foi o pensei hoje, quando enterrei minha irmã.

    Mas não tenho certeza...

    luiz caversan

    Escreveu até abril de 2016

    É jornalista e consultor na área de comunicação corporativa.

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