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    Luiz Caversan

    Eu, você e o menino na praia

    05/09/2015 02h00

    Éramos todos chamados de turquinhos.

    Eu era italianinho, na verdade, mas por conta da pele morena e do nariz adunco, herança do avô português do Algarves descendente de mouros, era turquinho também, embora não devesse ser: turco não é árabe, não tem nada a ver com mouros ou sírios.

    E sírios eram grande parte dos meus amiguinhos quando eu tinha seis, sete anos. Filhos de comerciantes de móveis e roupas que moravam naquele pedaço da zona leste de São Paulo, eles, os turquinhos na verdade sírios, eram muitos, e como nós outros, descendentes de portugueses, italianos, espanhóis, russos, japoneses, alemães, poloneses, libaneses, gregos, húngaros, checos e judeus de diversas origens, formávamos a babel de uma São Paulo que a todos acolhia, que vinha acolhendo há tempos, e assim continuava, inclusive os irmãos nordestinos que chegavam então (anos 1950/1960) aos magotes, fugindo da seca.

    Primeira, segunda, terceira (meu caso) geração de imigrantes, éramos todos brasileiros, paulistas, sem discriminação cantávamos ombro a ombro o Hino Nacional na fila da escola no Sete de Setembro.

    As diferenças de origem, já passados mais de 10 anos do fim da Segunda Guerra, ressurgiam apenas nas conversas de botequim e nas eventuais desavenças entre os da mesma nacionalidade: bascos xingavam os catalães que provocavam os galegos, enquanto o veneziano (meu avô) insultava o napolitano que não suportava os calabreses, ao passo que os lisboetas esnobavam os açorianos que se desentendiam com os da Madeira. Mais bate boca do que outra coisa...

    Mas estavam todos aqui, muito pobres, remediados, alguns já bem sucedidos, lutando dia após dia, ralando nas oficinas do Belém, nas marcenarias do Brás, no comércio do Bom Retiro, nas feiras livres, quitandas, padarias...

    Estávamos todos aqui porque o Brasil aceitou os nossos avós e pais, não nos deixou à deriva.

    Estávamos todos aqui porque os navios sujos, fétidos, infestados de parasitas nos porões da terceira classe em que viajaram europeus, asiáticos e os provenientes do oriente médio puderam aportar em Santos, e eles subiram a serra, foram triados ali no controle de imigrantes da Mooca, seguiram para as lavouras do interior ou para o chão das fábricas da São Paulo que não podia parar, se estabeleceram, ganharam cidadania, aumentaram a família, morreram, nasceram, se misturaram.

    E estamos todos aqui, brasileiros.

    Você aí, que torce o nariz ou posta ofensas aos haitianos, bolivianos ou coreanos que estamos recebendo, qual o seu sobrenome? Oliveira, Rossi, Haddad, Schultz, Honda, Silva, Bianchi, Jorge, Bergman? Brasileiro da gema, né? Hã, hã.

    Tinha prometido a mim mesmo não tocar no assunto do menino da praia (veja sua história e da sua família no fim deste texto...), porque certamente iria ter de enfrentar xenofobia, ignorância e intolerância dos que se consideram escolhidos, donos da verdade e desta terra aqui.

    Mas, vamos lá, porque estes jamais irão entender mesmo que esta terra só é sua hoje porque, a não ser que sejam descendentes diretos de Arariboia ou Potira, um dia seus antepassados foram acolhidos, respeitados, salvos.

    Salvação que não teve o menino da praia, aquele, cuja imagem chocou e tem mais é que chocar mesmo, merece virar um ícone assim como virou símbolo a da menina correndo com o corpo queimando no napalm do Vietnã, lembra?

    A foto do menino que não estava brincando na praia é a porrada que precisava ser dada para que o mundo passe a ser visto de outra maneira, que as fronteiras, ao menos as mentais e ideológicas, sejam relativizadas e que a velha e caquética Europa, mais uma vez, e que sejam mil vezes, confronte seus nacionalismos pérfidos, suas desigualdades históricas e sua vocação para a eugenia.

    Nós, brasileiros, não precisamos ser assim.

    *

    Aliás e a propósito, reportagem da BBC Brasil informa que, "segundo dados do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), órgão ligado ao Ministério da Justiça, 2.077 sírios receberam asilo do governo brasileiro de 2011 até agosto deste ano". O número é superior ao dos Estados Unidos (1.243) e ao de países no sul da Europa que recebem grandes quantidades de imigrantes ilegais –não apenas sírios, mas também de todo o Oriente Médio e da África.

    Podemos, com generosidade, dar uma lição para o mundo? A conferir...

    *

    Sobre o garotinho que tantas lágrimas arrancou por aí, reproduzo o post que a amiga e jornalista Maria Brant publicou no Facebook, compilando informações de diversos jornais europeus e do Canadá:

    "O nome do menininho era Aylan e ele tinha três anos. Seu irmão, Galip, tinha cinco. Eram filhos de Rehan e Abdullah Kurdi, curdos da cidade de Kobane, na Síria. Eles fugiram de Kobane após a cidade ser tomada pelo ISIS (Estado Islâmico) em junho, por razões óbvias. Como muitos em sua situação, não conseguiram tirar passaportes antes de fugir, também por razões óbvias.

    Conseguiram chegar à Turquia. Entraram, então, com um pedido de visto de imigração G5 para o Canadá. Para vistos G5, o Canadá exige que algum cidadão canadense 'patrocine' o pedido. Abdullah tinha uma amiga, Teema, que imigrara para o país havia mais de vinte anos, e ela aceitou patrocinar o pedido de sua família. O visto de Abdullah e sua família foi negado. Mas Teema insistiu. Procurou um vereador da cidadezinha onde morava, que se sensibilizou com o pedido e entregou a documentação da família em mãos ao ministro canadense de Cidadania e Imigração, Chris Alexander. Alexander disse ao vereador que examinaria o caso, mas nem o vereador, nem Teema, nem Abdullah tiveram mais notícias sobre o pedido.

    Ao chegar na Turquia, como muitos em sua situação, Abdullah e sua família tinham pedido que a ONU lhes concedesse o status de refugiados. Se conseguissem, teriam direito a um passaporte de refugiado e, assim, passariam a 'existir' oficialmente e, portanto, a ter direitos. Mas a ONU lhes negou o pedido (não sei os detalhes deste caso específico, mas, muitas vezes, o status de refugiado é negado quando famílias não conseguem provar oficialmente que são perseguidas –no caso, como Kobane não estava tomada 'oficialmente' pelo ISIS, talvez eles tenham tido dificuldade em provar sua situação).

    A família tinha pedido também à Turquia que lhes concedesse um visto de saída. Assim, poderiam tentar emigrar para outro país europeu. Mas a Turquia lhes negou o visto de saída porque eles não tinham passaportes válidos. Eles não tinham, portanto, como sair do país em nenhum meio de transporte que parasse num posto de fronteira. Ou seja, não podiam pegar trens, navios, ônibus ou aviões.

    Decidiram, então, com outras pessoas em situação semelhante, ir num barquinho para a ilha de Kos, na Grécia –onde provavelmente tentariam de novo imigrar oficialmente, conseguir status de refugiados ou um visto de saída. Não conseguiram chegar.

    Além de Aylan, Galip e Rehan, oito pessoas que estavam no barco morreram afogadas. Abdullah diz que agora só quer voltar para Kobane, para poder enterrar oficialmente seus filhos e sua mulher."

    Ele conseguiu enterrar sua família na sexta-feira...

    *

    Você quer fazer alguma coisa em favor dos refugiados? Dá uma olhada aqui.

    luiz caversan

    Escreveu até abril de 2016

    É jornalista e consultor na área de comunicação corporativa.

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