• Colunistas

    Friday, 03-May-2024 03:23:07 -03
    Luiz Felipe Pondé

    Cro-Magnon no shopping

    20/10/2014 03h00

    Somos uma espécie pré-histórica que passeia no shopping. Explico: somos adaptados a um cenário de uns 50 mil anos atrás. "Shopping", aqui, significa a vida moderna. Logo: uma espécie que "está" na pré-história desfila pelos shoppings hoje "achando" que a pré-história saiu dela.

    Desde que comecei a ler
    sobre a pré-história, minha vida mudou. Afirmação dramática para uma segunda-feira, claro. A pré-história arruinou em mim a ilusão de que o mundo tenha começado na queda da Bastilha, como pensam os inteligentinhos.

    Eu sinto a cada instante que a pré-história nos espreita pela fresta da porta. Não o Messias, como dizem alguns místicos judeus, mas a pré-história. Somos uma espécie pré-histórica que passeia no shopping.

    Mas devo dizer que, para mim, isso não é uma humilhação. Pelo contrário, nutro grande reverência por nossos ancestrais. Julgo-os mais sérios, mais sólidos e com muito mais noção da realidade.

    Nós somos uns mimadinhos exigindo direitos. Às vezes, suspeito fortemente que ficamos um pouco retardados. A consciência pré-histórica em nós é um dado de realidade profundo e que age em nós silenciosamente.

    Por isso, é uma espécie de inconsciente evolucionário que garante que não fiquemos tão idiotas.

    As mulheres, por exemplo, na pré-história, eram um poço de prontidão selvagem pra vida, com sua coragem, determinação e fôlego de parir bebês sem gineco, sem eutonista, sem doula, sem astrólogo... Sei, antes que algum inteligentinho apaixonado por iPhones grite, que a vida era muito mais dura. Por isso mesmo, menos boba.

    Umas das consequências de ver o mundo com os olhos da pré-história é se assumir como alguém influenciado pelo darwinismo, que julgo muito superior ao marxismo como análise de mundo. E isso não significa "defender" o darwinismo social como inteligentinhos, na sua pressa típica de mentes lentas, assumem.

    Significa reconhecer em nós um Cro-Magnon que é obrigado a cada dia viver num mundo de luxo estranho a nossas origens: não somos um animal do luxo.

    Significa reconhecer que ainda que desfilemos marcas chiques e sonhemos com direitos que garantam a vida, sabemos, no fundo de nossos cérebros neolíticos, que a vida, no fundo, é atrair parceiros pra reprodução, impressionar amigos com nossas realizações e gerar e cuidar da prole.

    Tememos a precariedade, que, aos poucos, queremos acreditar que já foi resolvida. Hobbes estava certo, mas não só em política.

    Evoluímos num ambiente de alto risco e que exigia de nós muita consciência prática. Vivemos hoje num ambiente alucinante de criações "luxuosas" que nos fazem acreditar que a vida seja uma "criação social" que construímos ao sabor de nosso desejo. Em resumo: levamos muito a sério o parque temático que construímos.

    Segundo o que nos diz Geoffrey Miller, psicólogo evolucionista, em seu divertido (indicação da minha filha) "Spent - Sex, Evolution, and Consumer Behavior", Penguin Books, 2010, o darwinismo é um parceiro mais capacitado a entender a razão de viver como vivemos.

    O autor imagina uma hipotética conversa entre um de nós (que viaja no tempo) e os Cro-Magnon e tenta convencê-los que nossa sofisticada época seria melhor do que a deles. Ao final, os Cro-Magnon chegam à conclusão de que nosso mundo é estragado por coisas desnecessárias e que complicam o "foco" da vida: segurança, reprodução, cuidado com a prole.

    Para Miller, compramos feito loucos porque queremos emitir sinais que mostrem aos nossos parceiros de bando nossa capacidade de conquistar o mundo. Neste sentido, "materialismo" não seria um bom termo pra descrever nosso mundo porque o que adquirimos com essa parafernália não é a "matéria" em si dos objetos, mas sim o poder de impressionar os outros com nossa capacidade de adquiri-los.

    Estes sinais seriam "fitness indicators" (indicadores de adaptação), ou seja, sinais de que somos capazes de reproduzir, gerar e cuidar. Há um inconsciente evolucionário agindo em nós e estamos apenas começando a entendê-lo. Acho que deveríamos estudar mais a pré-história e menos os anos 60.

    luiz felipe pondé

    Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024