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    Luiz Felipe Pondé

    O silêncio dos animais

    29/12/2014 02h00

    Penso como os gregos antigos: acho que não existe história (como progresso no tempo) e que avançamos apenas tecnicamente e, mesmo assim, sem qualquer segurança nos resultados a longo prazo.

    Numa palavra: não creio no mito iluminista do progresso e acho que a humanidade anda em círculos, indo pra lugar nenhum. As guerras nunca acabarão, nem a violência contra os mais fracos, nem os milagres da generosidade aqui e ali, nem a idiotice humana de se achar "top na balada" no planeta, nem a escassez na vida, que tantos inteligentinhos acham que acabariam com a vitória do PSOL.

    Em termos morais e políticos, podemos voltar a qualquer instante à idade da pedra, ou pior. Afirmação dura pra quem de fato "crê" no Réveillon, talvez. Dentro de cada um de nós vive um "neandertal" (sem querer ofender seus descendentes, claro...).

    Nesta semana acaba 2014. Mas o tempo passa mesmo? Pergunta idiota se pensarmos no espelho e em nossas rugas. A conclusão é que, sem dúvida, existe um processo de erosão celular em todos nós. Mas isso não é história como mito do progresso ou de uma evolução moral do homem. É apenas células nascendo e morrendo. Crer na evolução moral do homem é ignorância ou simples vaidade.

    O tema do tempo circular e dos enganos humanos com relação à história herdada do mundo hebraico e aceita pelo iluminismo (história como progresso moral e político) é objeto do livro "The Silence of Animals, on Progress and Other Modern Myths", do escritor inglês John Gray (o mesmo de "Straw Dogs", "Cachorros de Palha", na versão brasileira).

    O livro se abre com uma bela citação de Arthur Koestler, "Darkness at Noon", na qual o autor comenta o olhar silencioso dos chipanzés e sua "sofisticada civilização" para os inquietos e grosseiros neandertais (nossos primos próximos) na sua labuta desequilibrada pela sobrevivência. Sob esse olhar, nossos primos neandertais são vistos pelos sábios chipanzés como um acidente passageiro da história da seleção natural que não durará muito.

    Se pensarmos que os neandertais viveram cerca de 250 mil anos na Terra, ainda não empatamos com eles. Claro que a metáfora usada por Gray visa demonstrar o efêmero de nossa segurança com relação ao nosso suposto protagonismo na face deste planeta.

    Ao longo do livro, o autor sustenta que a realidade é sempre frágil, e um caos essencial permeia tudo. Esse caos nos ameaça desde sua escuridão e o enfrentamos desde tempos primevos com nossas criações míticas que falam de nossa história mais antiga até o mito mais recente da razão e da ciência como eventos definitivos na história da humanidade.

    Gray escolhe Freud como sendo aquele que compreendeu muito bem como esse caos repousa no fundo de nossa alma e como o enfrentamos psiquicamente de modo cotidiano desde a mais tenra infância. Produzimos mitos pessoais a fim de cuidar desse terror essencial. Do cosmos violento, as angústias internas, combatemos o sentimento de ameaça que nos permeia. Sabemos, no fundo, que toda realidade é, em si, insustentável a longo prazo.

    Por isso, no lugar da inquieta labuta neandertal, Gray olha para o silêncio dos animais, como metáfora de sua sabedoria: a natureza (que nada tem de Gaia bonitinha vendida na feira do Parque da Água Branca), na sua fúria primeva, ri daqueles que pensam subordiná-la a seus planos monumentais.

    Desde que passei a estudar a Pré-História, sofro do mesmo tipo de visão de mundo que Gray apresenta nessa obra. A ilusão de que o mundo contemporâneo seja um grande fato sobre a Terra é comum em nossos dias.

    Cremos, risivelmente, que descobrimos o modo como manter a natureza "no seu lugar". Cremos, risivelmente, em nosso mito de progresso técnico e, pior, em nosso mito de progresso moral e político.

    Mas, como bem sabia Joseph Conrad em seu magnífico "No Coração das Trevas", a civilização moderna, no seu desembestado ânimo neandertal, é cega para a realidade inumana que existe eternamente no silêncio do mundo.

    Os animais, em sua sofisticada tradição, parecem saber disso melhor do que nossa vã filosofia.

    luiz felipe pondé

    Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas.

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