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    Luiz Felipe Pondé

    Quem é Charlie?

    12/01/2015 02h00

    Vou dizer isso de forma direta: os protestos contra o massacre em Paris são típicos de nosso mundo bobo, onde o debate público tem a mesma consistência que a Coca-Cola.

    Dizer "Eu sou Charlie" numa camiseta ou cartaz é uma piada diante da tragédia, mas agrada a sensibilidade "pseudo" que domina a "critica social" contemporânea, que usa máscaras de personagens revolucionários do cinema (do péssimo filme "V de Vingança") como se fosse coisa séria.

    Quer protestar contra o massacre? Faça camisetas com charges semelhantes às que levaram os cartunistas franceses à morte. Tá com medo? Claro.

    Antes, uma palavrinha mais dedicada aos inteligentinhos e críticos de Facebook: qualquer pessoa minimante inteligente e sem muita má fé sabe que a maioria esmagadora dos seguidores de Alá é gente comum, que trabalha, tem filhos e se vira como pode para viver, como a maioria de nós. E que, portanto, nada tem a ver com grupos fanáticos do tipo que, aparentemente, matou os cartunistas franceses.

    Sim, hoje em dia, num mundo no qual o debate público é dominado pela babaquice inteligentinha, sempre temos que deixar claro que não partilhamos dos fetiches sociológicos típicos do debate herdeiro do blá-blá-blá da luta de classes e do "oppression studies" (estudos sobre a opressão, em português). Dito isso, vamos ao que importa.

    Os grupos fundamentalistas islâmicos acham o Ocidente um lixo. Quem negar isso é mentiroso ou simplesmente ignorante. Odeiam nosso consumo, nosso culto ao "voto", nossas liberdades, nossas mulheres (para eles, são umas vagabundas), nossos homens (para eles, somos uns frouxos), nossas músicas, como no passado odiavam os cristãos.

    Esse ódio à "Europa" está claro em muita literatura boa sobre isso, apesar da historiografia marxista ter quase destruído a história como pesquisa de fontes (que é a história em si, não?). O historiador marxista hoje é, basicamente, um preguiçoso que vive de metafísica hegeliana barata.

    Uma das marcas desses malucos (os terroristas) é querer refazer o caminho das Cruzadas e das guerras do Mediterrâneo entre o Império Otomano e a cristandade de então, no século 16.

    Sobre isso, o excelente livro "Impérios do Mar - A Batalha Final Entre Cristãos e Muçulmanos pelo Controle do Mediterrâneo", de Roger Crowley (ed. Três Estrelas, 456 págs., R$ 59,90), é um banho de erudição com uma escrita simples e direta. Olha só isso:

    "Eu sou o raio do céu. Minha vingança não será apaziguada até que eu tenha matado o último de vocês e escravizado suas mulheres, suas filhas e seus filhos."

    Parece a fala de um dos terroristas na França ou de um dos caras do Estado Islâmico? Mas não é.

    Trata-se de uma mensagem deixada por Hizir, um dos irmãos Barbarossa, em 1514, num cavalo em Minorca, pouco antes da invasão que foi um dos inúmeros massacres de cristãos realizados pelos otomanos. Os cristãos também massacraram muçulmanos aos montes.

    Basta ler a obra de Crowley e você verá que o imaginário desses terroristas está cozido em fatos históricos concretos. Eles se acham herdeiros do islamismo medieval e moderno em luta contra o "ocidente infiel". Nada a ver com o blá-blá-blá dos males do capitalismo.

    Claro que os racistas europeus vão usar o que aconteceu para endossar sua babaquice xenófoba. Esses terroristas só atrapalham os próprios muçulmanos em seu dia a dia.

    Mas, para além dessas obviedades (os inteligentinhos adoram obviedades), uma coisa me chamou a atenção: os protestos, os de rua, os da mídia, os das camisetas e dos "bottons".

    Fazer uma faixa dizendo "not afraid" (sem medo, em tradução livre) significa pouco diante do que aconteceu como forma de resposta à violência.

    A moçada deveria encher as redes sociais não apenas com charges e manifestações de lamento e de luto (também são importantes), mas sim com charges e manifestações que de fato mostrassem a esses terroristas que não temos medo deles.

    Quais? Você sabe bem quais. Onde está o humor irreverente que tira sarro de Jesus? Por que não se pode ser irreverente com o Islã? Medo?

    A verdade é que temos medo deles. Porque, como bem disse um jihadista afegão a um repórter do jornal britânico "The Telegraph" : "Os americanos amam Pepsi, nós amamos a morte".

    luiz felipe pondé

    Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas.

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