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    Luiz Felipe Pondé

    'Soumission'

    09/03/2015 02h00

    "Soumission" (Submissão) é o título do livro de Michel Houellebecq que fez muito barulho na época dos ataques de janeiro em Paris.

    Segundo a mídia, o autor teria suspendido o lançamento e saído da cidade por causa da infeliz coincidência entre o tema de seu novo livro e o ataque levado a cabo por terroristas islâmicos ao jornal "Charlie Hebdo" e a um supermercado de comida judaica.

    Houellebecq, já famoso por "Partículas Elementares" (Sulina, R$48, 296 págs.), é visto como um niilista.

    "Submissão" é uma tradução possível para Islã. Mas, quem leu o livro sabe que a trama transcende qualquer conceito da moda, do tipo "islamofobia", e constitui mais um exemplo brilhante de distopia, do tipo "1984" de Orwell ou "Admirável Mundo Novo" de Huxley.

    Estamos numa França pós 2020.

    A Fraternidade Muçulmana Francesa, partido semelhante ao que há hoje na Turquia e à fraternidade muçulmana egípcia, ganha a eleição.

    O novo presidente é um elegante francês muçulmano moderado chamado Mohammed Ben Abbes, que recebe apoio no segundo turno tanto do partido de Sarkozy (UMP) quanto do partido socialista de Hollande e Valls, contra Marine Le Pen do Front National.

    Só que a França é, neste momento, um país rasgado por conflitos "identitários", como é descrito no romance. De um lado, grupos jihadistas, criticados pelo próprio Ben Abbes, e de outro, grupos radicais de direita, inspirados pelo Front National, que os critica também.

    Le Pen tenta reconstruir a imagem de seu partido como um defensor do espírito iluminista, mas fracassa.

    A França cai nas mãos da Fraternidade pensando que, por ela não ser jihadista, não a submeterá a práticas islâmicas. O conceito de submissão no romance é cultural, e não político-militar.

    O ceticismo com a política assola a população e o discurso de Ben Abbes encanta por sua moderação e sua chamada a valores "humanitários" como família, amizade, espiritualidade, e sua recusa do materialismo capitalista.

    O personagem principal, um intelectual especialista em literatura francesa do século 19, é um deprimido -como quase todo mundo, aliás.

    Esta questão é importante na trama: o ocidente se esgotou como "produtor de valores" e agoniza.

    A França, representante deste modelo ocidental centrado no individualismo consumista e no narcisismo chique, está em pedaços.

    Os solitários, sem laços familiares ou afetivos duradouros, abraçam a Fraternidade Muçulmana como opção política e cultural de salvação.

    Ben Abbes é visto como um criador de valores. Uma nova França muçulmana, distante do materialismo capitalista e individualista, e que tem numa imaginária "Roma islâmica" seu projeto político, nasce em todas as instituições culturais francesas.

    O foco da Fraternidade é a educação e a demografia. As mulheres são estimuladas à experiência da maternidade e "do cuidado com a vida" e as escolas ensinam o Corão.

    O desemprego cai porque as mulheres voltam para as casas e sobram empregos para os homens.

    Todos felizes. Na verdade, talvez, as pessoas gostem da submissão. Põe a vida em ordem.

    A universidade, agora chamada Université Islamique Paris-Sorbonne, é uma das aderentes mais imediatas ao projeto de islamização.

    Dinheiro das petromonarquias árabes banham a vida de alguns professores "de carreira", na nomenclatura universitária (geralmente aqueles que privilegiam a carreira de poder institucional em detrimento a qualquer experiência intelectual de fato), garantindo que quem não se converte ao Islã perca o emprego ou tenha sua vida transformada num inferno.

    Os judeus, claro, fogem.

    É assim que acontece a submissão das pessoas em governos autoritários: o regime, através de seus agentes medianos e medíocres, torna a vida cotidiana de seus inimigos insuportável muito antes de empreender perseguições "espetaculares".

    Instrumentos institucionais comuns como órgãos colegiados, conselhos sociais e afins, destroem a viabilidade de inserção profissional de seus adversários ideológicos.

    Submete-se uma pessoa tirando seu café da manhã, seu almoço, sua janta, sua TV a cabo e sua wifi. É o fim da Europa que conhecemos.

    luiz felipe pondé

    Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas.

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