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    Luiz Felipe Pondé

    Sonho de Miss Universo

    13/04/2015 02h00

    O acordo nuclear com o Irã está sustentado em dois pilares de uma geopolítica que entende que a guerra se tornou irracional como forma de diplomacia para as partes envolvidas no contencioso –o conflito de interesses.

    Essa linda tese enche meus olhos de lágrimas quando imagino um mundo sem guerras. Eis o sonho de toda Miss Universo. Pombas brancas por todos os lados, aliviando, antes de tudo, nosso próprio incômodo com nossa natureza instável, hipócrita e aterrorizada, com razão.

    Mas a guerra continua sendo parte da diplomacia, apesar de nossa visão de mundo, construída num mix de aulas delirantes de ciências sociais e praças de alimentação de shoppings, achar que não.

    E mais: o Brasil, infelizmente, continua não entendendo nada do que se passa no Oriente Médio, porque analisa a geopolítica sob vícios adolescentes do tipo: "opressor versus oprimido", quando ela é muito mais a gestão da violência entre os povos, sem chave moral (ou ideológica) prévia.

    É dessa ignorância que brota a pouca estatura diplomática do país. Esses baixinhos deveriam ler mais Maquiavel e menos Harry Potter.

    Mas voltemos ao Irã da Miss Universo. Os dois pilares que sustentam o acordo nuclear são os seguintes: primeiro, transparência.

    Daqui para frente, o comportamento iraniano no tocante a sua pesquisa nuclear deve ser transparente. Os iranianos ficam obrigados, sob pena de serem vistos como "sem palavra" e sofrerem novas sanções, de prestar contas aos EUA e aliados de "todos" seus passos nucleares.

    Ao longo dos próximos 15 anos, o Irã deve provar que seu enriquecimento de urânio não é suficiente para fazer bombas nucleares. Isso implica que os processos (inúmeros) da cadeia de produção nuclear sejam completamente transparentes para os EUA e aliados.

    Portanto, a transparência, na verdade, seria melhor descrita como confiança, uma vez que o Irã pode muito bem continuar escondendo parte da sua indústria bélica nuclear –como, aliás, sempre aconteceu na maioria do países com potência nuclear, ora bolas.

    Por isso, Kerry e Obama ficam o tempo todo se defendendo contra a acusação de "naïveté", palavra chique para ingenuidade.

    O segundo pilar, que apareceu na fala de um dos auxiliares diretos de Kerry numa entrevista à CNN no dia da assinatura do "acordo de paz", mas que é mais difícil de se perceber, é a suposição de que o Irã seria um idiota geopolítico caso fabricasse a bomba sob o manto da mentira.

    Nesse caso, o país trairia a confiança depositada nele pelos EUA e seus aliados. Esse pilar é a crença na razoabilidade geopolítica do Irã, baseado no princípio de que a paz é sempre a primeira opção numa negociação. E que essa paz pressupõe a integridade de todos os envolvidos no contencioso.

    Como vemos, o pilar verdadeiro do acordo é esse, e não a transparência/confiança, porque o acordo se baseia nessa razoabilidade geopolítica do Irã, coisa que, para quem conhece ou está no Oriente Médio, parece conversa de menina.

    Uma das críticas que Israel e os sauditas fazem ao acordo é que, suspendendo-se as sanções, os iranianos terão mais condições para fazer a bomba mais rápido.

    Afora o fato de que o Irã tuíta que vai riscar Israel do mapa gratuitamente (alguém ouviu ameaça semelhante por parte dos israelenses?), e de que quer colocar uma cabeça de ponte numa "praia saudita" conhecida como República Árabe do Iêmen, para atormentar seu arqui-inimigo, a Arábia Saudita, a base da descrença no acordo que une tanto israelenses quanto sauditas é o fato de que estão no Oriente Médio.

    Ambos sabem que essa razoabilidade "queijos e vinhos" não vale por lá, e que acordos são solúveis em água e sangue –há pelo menos 4.000 anos.

    Concordo com o fato de que o Irã pode muito bem dizer: "Se Israel tem por que eu não posso ter?".

    Eles terão sua bomba atômica e quem viver verá o Oriente Médio aumentar sua escala de violência em 15 anos.

    O Irã é um grande patrocinador do terrorismo na região. Que tal se vazar artefatos nucleares para o Estado Islâmico, para a Al Qaeda, o Hamas e o Hizbollah?

    luiz felipe pondé

    Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas.

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