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    Luiz Felipe Pondé

    Mundo gourmet

    25/05/2015 02h00

    Se você perguntar para uma menina ou menino de classe social de média para baixo, de uns 20 anos, mais ou menos, o que ela ou ele deseja na vida, é provável que ouça algo como "comprar uma casa", "ajudar minha mãe", "fazer um curso para ganhar mais", "ter um carro", "casar e ter filhos".

    Claro, exceções existem, mas apenas confirmam a regra. Refiro-me ao tipo de expectativa deles. As expectativas desses jovens parecem ser bem "comuns" e sem muita elaboração utópica (prefiro a expressão "gourmet" a "utópica").

    Tomam o mundo como ele é, sem reclamar das regras. E também chamam as coisas por seus nomes, em vez de inventar "nomes sociais" para as coisas. Não são mimados pelos "professores de humanas" em suas escolas. Voltaremos aos mimados na sequência; por enquanto, vamos nos manter no plano da realidade dos que não são jovens gourmets.

    Normalmente, esses jovens precisam arrumar seus quartos; pegam transporte coletivo por horas num mesmo dia (em vez de parar a cidade pedindo coisas impossíveis); se não arrumarem um "trampo" não fazem faculdade; não têm muito programa de final de semana; enfim, a vida cobra a conta diariamente.

    O papo é mais reto e o nível de imaginação é mais colado ao chão.

    Por isso mesmo, acabam tendo uma noção maior de quantos paus são necessários para se fazer uma canoa. Não conhecem muito a experiência de ter alguém por perto deles que ache tudo o que eles fazem "lindo" ou "criativo".

    À noite, caem na cama cansados e devem acordar muito cedo no dia seguinte porque moram longe. A alimentação não segue a última moda: zero glúten. Mas, talvez por isso mesmo, acabam tendo mais fibra para enfrentar o escândalo que é a vida real (e que sempre foi e sempre será). Não enxergam a barbárie, nadam nela.

    Quando você ouve um jovem falar que a "barbárie da vida é fruto da mercadoria", é provável que esteja diante de alguém que costuma viajar para Nova York com os pais nas férias (ou para a Chapada, o que não é tão barato assim, e neste caso, sem os pais). Ou algum destino semelhante.

    Esses jovens revoltados com a injustiça social (por isso fazem cursos em Cuba) frequentam o JK Iguatemi, ainda que envergonhados. Na maioria dos casos, se preocupam muito com a alimentação e sempre ouviram adultos por perto (pagos ou não) dizendo que o que faziam era "lindo" ou "criativo".

    Quando pensam no mundo ou na vida, comparam os dois com algo (que quase nunca existiu na face da Terra) que o "professor de humanas" falou na escola cara em que estudaram. Apresentam, com frequência, dificuldades para chamar as coisas pelos seus nomes e preferem "nomes sociais".

    Exemplo: bandidos não são bandidos, drogados não são drogados, vagabundo não é vagabundo, gente ruim não é gente ruim, mãe irresponsável não é mãe irresponsável, egoísmo não é egoísmo, enfim, dinheiro não é grana, mas sim "O Capital". Só gente que tem dinheiro chama "grana" de "O Capital".

    Interessante observar como jovens com melhores condições de vida têm uma concepção de mundo gourmet.

    Imaginam que as pessoas de fato passam suas vidas "alienadas" e que, se o mundo fosse outro, não seriam "alienadas".

    Sofrem de uma espécie de platonismo tardio. Imaginam um mundo em que as relações de trabalho seriam definidas pela beleza de seus olhos e não pela regra básica que rege tudo: quando se quer uma coisa que todo mundo quer, ela é rara e custa caro. Se ninguém quer, sobra e custa barato.

    Normalmente, por terem muito tempo livre para pensar em si, desenvolveram uma dificuldade específica para lidar com coisas muito concretas, como a sujeira do banheiro. Revoltam-se contra a "exploração", mas frequentam o litoral norte de São Paulo. Para eles, sexo é "uma questão".

    Sei que algumas pessoas julgam necessário que jovens tenham algum espaço para imaginar um mundo que não existe. Eu discordo. Esse hábito se desenvolveu junto com o luxo material. Não creio que jovens tenham que sonhar com um mundo que não existe. Achar isso é típico do mundo gourmet no qual o limão só vale se for da Sicília.

    luiz felipe pondé

    Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas.

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