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    Luli Radfahrer

    Visão biônica

    04/03/2013 03h00

    Cansado de ignorar minha presbiopia, resolvi assumir o peso da idade e experimentar pela primeira vez óculos com lentes multifocais. A experiência foi um pouco atordoante. Meus olhos, acostumados a encontrar foco em todos os lugares, se viram de repente confinados a áreas especializadas. Com o tempo, me acostumei e passei a ver melhor.

    Acredito que o novo Google Glass, que estima-se estar no mercado em 2014, promova uma experiência parecida. Como qualquer inovação, as informações a seu respeito são poucas, liberadas a conta-gotas. O que se sabe pelos relatos dos poucos felizardos que tiveram contato com o aparelhinho (sob cerrada supervisão da mamãe Google) é que o novo brinquedo é fascinante.

    Com um design digno da Apple, os ciberóculos transmitem um ar elegante e refinado, distante do que se imagina para uma tecnologia de ponta criada por uma empresa de engenheiros sem tradição estética. Ele não é o primeiro óculos vestível --a Oakley saiu na frente com uma máscara de neve com GPS e métricas variadas-- mas, graças à enormidade das bases de dados do Google, ele pode transformar completamente a relação que temos com as máquinas.

    Seu cérebro, minúsculo, fica em uma película plástica sensível ao toque. O resto é uma armação com contrapeso, que pode ser fornecida por várias empresas, da mesma forma que hoje o são as capinhas de iPhone. Acredita-se que essas armações é que darão a personalidade final ao produto. Google já vem negociando há algum tempo com Ray-Ban, Warby Parker e outros fabricantes para o desenvolvimento de novas linhas de produtos, para a tristeza de quem operou a miopia e achou que teria o rosto livre de molduras.

    Para funcionar ele precisa estar em um ambiente com rede sem fio ou conectado a um celular, coisa que a lentidão das redes ainda deixa a desejar mas que vem diminuindo com o tempo.

    Não há dúvidas que em breve ele deverá ter sua própria conexão 4G. Operá-lo é simples: basta um leve movimento de cabeça, um toque em sua lateral ou um comando de voz, que inicia com "OK Glass". Em sua configuração inicial a máquina grava vídeo, fotografa, envia mensagens, indica direções, acessa a rede, traduz e vê a previsão do tempo. Nada que um smartphone simplório não faça.

    A diferença não está na capacidade da máquina, mas na mudança de relação que se tem com ela. Mesmo que boa parte de seus futuros usuários façam pouco mais do que tirar fotos ou vídeos, mais um passo na direção do vestuário cibernético terá sido dado. Vídeos do Google fascinam com suas aplicações em paraquedismo e alpinismo, mas em um contexto mais mundano é fácil imaginar novas formas de reportagem, comércio, games e --como não?-- pornografia.

    É bom se preparar. O Glass e aparelhos similares ainda levarão um tempo para se popularizarem, mas como aconteceu com os smartphones, esse tempo é cada vez mais curto. Em pouco menos de dois anos, o conceito deixou a ficção científica e ganhou contornos reais. Antes do que se imagina, a ideia de zumbis trombando nas paredes enquanto tentam falar em inglês com seus óculos terá se tornado mais uma das esquisitices da vida moderna que, como arrobas, RTs e likes, aprendemos a ignorar.

    Os oclitchos não devem substituir tablets e notebooks porque a experiência de leitura e a capacidade de processamento ainda não chegam perto. Mas não surpreende que venham a exterminar os celulares. Ainda há muitas questões a serem resolvidas, como segurança e privacidade, que devem esquentar o debate pós-lançamento. De qualquer forma, o aparelho é mais bacana pelo que pode vir a ser do que pelo produto em si. Óculos conectados permitem que a realidade aumentada esteja presente no cotidiano, sobrepondo a tudo o que é visto uma camada de informação. Do reconhecimento de faces a novas formas de comércio eletrônico, o computador se torna uma verdadeira extensão do homem, transformando seu portador em um ciborgue com superpoderes.

    Vivemos em um período de transição fascinante, em que a vida cotidiana se torna cada vez mais dependente de Inteligência Artificial, que filtra os estímulos recebidos em bases de dados colossais. De um inocente mecanismo de busca, o Google vem se transformando em uma prótese cibernética, parte indissociável do homem biônico em que, inevitavelmente, nos transformaremos. Se não podemos evitar esse cenário, resta a esperança que sejamos capazes de negociar adequadamente o que sobrar dos nossos direitos.

    ESCLARECIMENTO: Esta coluna foi escrita sem acesso a um Google Glass. Tudo o que o autor soube a respeito de sua operação veio de relatos de terceiros, peço perdão por eventuais incorreções. A fotografia divulgada nas redes sociais foi manipulada no Photoshop para provar como é cada vez mais difícil separar o verossímil do verdadeiro :-)

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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