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    Luli Radfahrer

    Perdido em 2043

    11/03/2013 03h31

    Da janela tudo parecia igual. Na rua, a mudança era grande. Os carros não tinham pilotos. O ar parece limpo. As pessoas, sujas. E magérrimas. Dava para confundi-las com moradores de rua.

    Elas aparentam ter uns 30 anos, me surpreendi ao saber que tinham mais de 70. Estavam na flor da idade, pois a expectativa de vida ultrapassava os 120.

    Meu intérprete diz que a magreza contribuía para a longevidade e que a "sujeira" era biotecnologia, explorando micro-organismos na pele e cabelo e protegendo-os de agentes nocivos como álcool e sabões. Ele é um robô, tem a forma de um papagaio. Pousado no ombro, me faz parecer um pirata.

    Apesar de ridículo, não me deixariam sair sem ele --por segurança, disseram, mesmo que o crime físico estivesse quase erradicado por ali.

    Ilustração Alpino

    "Come-se muito pouco, alguns nem dormem", continua ele, enquanto eu comia um prato com cheiro e gosto estranhos, que parecia lasanha de micro-ondas.

    Era carne sintética, tecnologia que multiplicou a produção de alimentos para atender os 9 bilhões. Boa parte da comida era geneticamente modificada, reciclada ou criada em laboratório.
    Disseram que era nutritiva e livre de toxinas, o que pareceu bom demais para ser verdade.

    É difícil descrever o impacto de tantas máquinas inteligentes, onipresentes, no cotidiano. De roupas climatizadas e sempre limpas a fachadas de prédios mutantes, tudo parece piscar e pular.

    Não há computadores, celulares ou óculos. O software acompanha seu usuário na forma de "foglets", névoas de nanomáquinas que se configuram conforme a necessidade das pessoas. Não me acostumei com elas, por isso o papagaio.

    Ele me conta das mudanças ocorridas nas três últimas décadas. Quase toda instituição teve de se reformular depois que surgiram a energia gratuita e a nanotecnologia, limpando o ar, reciclando o lixo e gerando um volume quase infinito de recursos.

    Nada mudou tanto quanto a medicina. Sangue, ossos e órgãos artificiais crescem nos laboratórios, são adaptados ao DNA de seus usuários e trocados desapegadamente em funilarias humanas. Privadas identificam doenças e previnem cânceres. Neurocosméticos rejuvenescem a pele. Teme-se a eugenia, armas e drogas perigosas.

    O papagaio, fui descobrir, me vigiava. Visitante de outra época, sem histórico, eu era imprevisível.

    Em 2043 boa parte da vida pessoal é monitorada, não se fala em privacidade. Os espaços comuns são de propriedade privada, toda comunicação é registrada e interpretada.

    Muito do que chamam de memória é só armazenamento sem reflexão. Infraestruturas lembram de tudo, e como não esquecem, não perdoam. Perdidas, muitas pessoas parecem sós, frágeis, infantilizadas, formatadas por mecanismos de busca e objetos de consumo.

    Alguns, cansados das inconsistências humanas, recorrem a relações artificiais com máquinas. Do sexo enriquecido aos bebês que nunca crescem, tudo é artificialmente sereno.

    O Mundo Novo parece tão Admirável quanto assustador. No "Tec", que tem 60 anos, continuamos a analisar o impacto da tecnologia no que teimamos em chamar de natureza humana.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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