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    Luli Radfahrer

    O inferno de um cérebro digitalizado

    15/04/2013 03h00

    Assumindo que o cérebro possa ser digitalizado e todas as memórias preservadas, o resultado seria uma consciência desencarnada, capaz de experimentar de tudo sem se preocupar com eventuais consequências para o corpo.

    Livre deste fardo mortal, todos os sonhos seriam possíveis. Seria difícil resistir às tentações do sistema nervoso primitivo. Em um porre sem ressaca, não existiriam restrições a psicotrópicos e aventuras nunca imaginadas. Como seria saltar de bungee-jumping, sem equipamentos de segurança, doido de heroína em um espetáculo de cores, cheiros, gostos e imagens?

    Passada a infância das experiências não tardaria o tédio. Na imortalidade a adrenalina não tem o mesmo sabor. Talvez fosse a hora de tentar se unir ao próximo em uma intensidade jamais vista, infinitamente superior a uma gravidez, fundindo capacidades em uma compreensão infinita.

    Não tardaria para que outros se juntassem a esse Woodstock cibernético em busca de uma consciência única, mundial, transmitindo em ondas cósmicas a experiência telúrica para pirâmides esotéricas em outros planetas.

    Já ouvimos essa história. Desde muito antes do Tim Maia é comum a figura do doidão que vira crente, nem que seja por um breve período.

    A digitalização do cérebro, se for possível em algum dia muito distante, terá que ser analisada sob diversos parâmetros éticos. Sem o original, qual das cópias teria direito à identidade? Se todo clone pensa, todo clone tem direito à existência. Mas isso é Filosofia para os próximos milênios. Para não atormentar você com ficção cientifica, prefiro me concentrar em uma questão prática, bem conhecida por todos: a memória das redes.

    É bem sabido que um dos efeitos colaterais de redes sociais é o de lembrar (e expor publicamente) seus micos. Por mais que se tente esquecer de uma declaração, foto ou lugar frequentado, não tarda para alguém encontrar o registro e marcá-lo, para o desespero de quem sonhava esquecê-lo.

    O esquecimento, visto por muitos como um defeito, uma perda de informação, está gravado no código genético. Ele ajuda a selecionar e priorizar as experiências vividas, contribuindo para o aprendizado e o desenvolvimento. A memória humana precisa administrar a informação recebida entre os recursos limitados que tem para armazenar o que for relevante e recuperá-lo quando for necessário.

    O cérebro humano é maleável. Sua estrutura muda conforme o contexto, a emoção e a utilização da informação recebida. Não há máquina capaz de reproduzir esse processo orgânico chamado de plasticidade, que em uma mente saudável, remove o que é tóxico em busca de evolução.

    Há vários motivos para se esquecer de algo: para se livrar de uma experiência traumática, de lembranças tristes ou vergonhosas, de estilos de vida doentios, de comportamentos embaraçosos ou de coisas e lugares que não são mais usadas. Como Sherlock Holmes, é possível se esquecer temporariamente de tudo que não é relevante para uma situação. Apaixonados e fanáticos em geral descartam tudo o que não for belo em seu objeto de adoração. Quem sofre um trauma precisa se esquecer da experiência para continuar a viver produtivamente.

    Sob esse aspecto o esquecimento não é uma perda, mas um desapego. Ele acontece quando não há vontade de reter uma informação. É tão comum que é normal desenvolver métodos externos para lembrar do que é importante.

    Digitalmente essa administração de recursos não é necessária. Como não há plasticidade, pouco se aprende do que se acumula - e nada se esquece. As estruturas não se modificam e a memória é infinita. Quando tudo pode ser recuperado, perde-se a noção do que é relevante. É aí que surgem as implicâncias.

    Quem não esquece não perdoa, guarda rancores e revive frustrações. Um cérebro digitalizado será obrigado a rever todos os seus erros, incapaz de mudá-los ou esquecê-los, como quem relê uma discussão de relacionamento por SMS. Ele estará preso eternamente no pior lugar do mundo, sem a opção de melhorá-lo, de aprender com ele ou de encerrar a história, apagando o conteúdo em um suicídio. Não é uma situação desejável.

    Voltando à Filosofia, a neurociência de hoje mostra como a mente depende do corpo físico em que habita. Descartes errou ao tentar separá-los, da mesma forma que Platão se enganou ao imaginar um mundo habitado apenas por ideias. De todos os aforismos antigos, talvez o mais profundo ainda seja o bom e velho "mens sana in corpore sano".

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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