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    Luli Radfahrer

    Desorientação contemporânea

    10/06/2013 03h00

    Às vezes tudo parece ter perdido o rumo. Em muitos ambientes, a sensação é de um desconforto generalizado, como em um estresse pós-traumático coletivo. Ele se manifesta em atordoamento, falta de direção, plano ou referência. Cercados de aparelhos e serviços a piscar e pular a todo instante, muitos tem a ilusão de viverem em uma constante multitarefa, como se estivesses presentes em vários lugares no espaço ao mesmo tempo e não se sentissem verdadeiramente em nenhum deles.

    O resultado é um cotidiano cada vez mais disperso, em que as forças na periferia da atenção se amplificam, ofuscando o que está bem à frente. A ideia de criar (ou seguir) qualquer plano é atropelada por um constante improviso. Como personagens de videogame, é preciso estar alerta para cumprir as tarefas enquanto se desvia de impactos inesperados.

    Não causa espanto que as crianças em idade escolar tenham cada vez mais dificuldade em desenvolver e seguir linhas de raciocínios e que seus pais e irmãos mais velhos estejam cada vez mais cansados e estressados, despachando e tirando da frente qualquer nova experiência, em uma lista infinita de coisas a fazer, sem tempo para descansar.

    Até mesmo o consumo, que antes era uma fuga, cada vez se parece mais com uma obrigação do que com o suprimento de desejos ou necessidades. Listas de compras de natal, de aniversários e dias dos namorados estão mais para fardos do que para prazeres. A situação chega a extremos em que o ato da compra chega a ser mais importante do que o produto consumido, como se vê no desespero das promoções-relâmpago e no lançamento de novos telefones da Apple.

    Cansados com tanta multitarefa, muitos parecem incapazes de refletir, armazenar ou desenvolver qualquer raciocínio lógico em profundidade. Não há tempo para isso. Em um ambiente de demandas simultâneas, reconhecer padrões é mais urgente do que decidir o que fazer.

    O resultado é previsível. Sobrecarregado e exausto, o cérebro entra em modo automático, primitivo, instintivo, visível em surtos de violência, machismo, racismo, xenofobia e homofobia entre indivíduos aparentemente esclarecidos. São reações simplificadas, impensadas, impulsivas, não refletidas.

    Podemos até estar no meio de uma crise existencial, mas estamos ocupados demais para percebê-la. Paralisados frente a uma imensidão de dados que, apesar de disponíveis, não estão aí para serem necessariamente consumidos, muitos se desesperam e se entregam a crenças e macumbas generalizadas. Do apocalipse marqueteiro que aconteceria em 2012 a uma eventual singularidade que nos digitalize os cérebros, todos parecem estar desesperados para que o mundo acabe logo de uma vez - de preferência em um barranco, para que possam, finalmente, parar de pensar.

    À velocidade da luz o tempo se expande até chegar o ponto em que se paralisa. Ao correr furiosamente para o futuro, parece termos chegados ao ponto em que ele se perdeu de vista - e com ele qualquer tipo de rumo. Passamos a viver em um presente contínuo, um "agora" eterno, em que tudo é comprimido e apresentado simultaneamente, chamando a atenção e pedindo decisões.

    Até meados do século passado era comum ter uma ideia bem-definida de futuro. Em sociedade, o bem comum seria conquistado. Aos poucos e silenciosamente, os grupos se fragmentaram. Individualizados e mimados, todos parecem um pouco anestesiados, embrutecidos frente à profusão de mensagens.

    Entupidos de Pão, vamos ao Circo. Isolado e obeso, o público quer se distrair. Atividades que antes tinham valores sociais hoje foram reduzidas a entretenimento, e a mudança é mais do que semântica. "Entreter" quer dizer "manter dentro", não necessariamente levar a qualquer lugar ou conclusão.

    Como no mundo fantasioso dos RPGs, o objetivo não é chegar a um resultado, mas permanecer no jogo pelo maior tempo possível. Negando Aristóteles, a nova narrativa não visa conclusão.

    Nesse contexto, as histórias parecem ter sido substituídas por um grande reconhecimento de padrões. Blockbusters como Matrix, Avatar, Senhor dos Anéis ou Harry Potter e séries como LOST ou Game of Thrones, a narrativa é menos importante do que o cenário, fantástico, digno de RPG.

    Até mesmo em animações simplificadas, como Simpsons, Futurama e South Park, a complexidade está na quantidade de referências ao cotidiano é tamanha que a história fica reduzida a um conjunto de referências rasas e trocadilhos de baixa qualidade, típicos de comerciais de TV.

    Esse universo publicitário vazio, em que se valoriza uma perfeição inatingível e tudo pode ser feito é evidente em jogos como Grand Theft Auto. Na simulação é possível ser um criminoso de passado desconhecido e misterioso, desembaraçado de limites éticos, embriagado de independência e poder, irresponsável e impulsivo em um barato infinito cocaína.

    Na TV e no YouTube, nas redes sociais e nos pancadões, a única regra possível parece ser chocar o máximo, ampliando a desgraça, a dor, a humilhação e a tragédia pessoal a limites antes inaceitáveis, na esperança de criar alguma resposta em uma plateia zumbificada.

    Isolados e fragilizados, nunca valorizamos tanto o desempenho e a expressão individuais. Esportes independentes, freestyle, como escalada, surfe, mountain bike e skate crescem por serem, como RPGs, jogos infinitos. Seus maiores valores são o improviso, o conhecimento do terreno e o estilo individual. Não há adversário, vitória ou derrota.

    Essa dissonância cognitiva leva a sociedade a uma adolescência em massa, época em que o indivíduo se descobre independente, questiona as verdades que lhe foram ditas e sai em busca de novas experiências por conta própria.

    Ao longo da história, adolescentes eram amortecidos por outros grupos, e tinham que se civilizar. Hoje que sua rebeldia é admirada e imitada, os comportamentos que antes eram vistos como inapropriados são estimulados. Aos 14 ou 55 anos de idade, muitos parecem viver em um grande Centro Acadêmico, acreditando que pode mudar o mundo com suas próprias teorias, tentando "corrigir" os outros mesmo que seja à força e ignorando o contexto e o legado adquiridos até agora.

    Não me parece ser um jogo que alguém seja capaz de vencer. O que esperar de movimentos como o "Occupy Wall Street" e outras "primaveras" que se não tivessem o apoio da velha, tradicional e surrada imprensa, não passariam de arruaças? Ou de tantas manifestações de sofá, cuja popularidade parece ser mais importante do que os resultados?

    Gente com cinco ou mais décadas de experiência se diverte em calçar os mesmos tênis e ouvir as mesmas bandas de sua, enquanto entopem seus filhos com medicamentos e jogos eletrônicos para que os deixem em paz para malhar e se botocar. Jovens de chapéus e bigodes se apropriam de estilos de gerações passadas e as embalam no presente buscando autenticidade e legitimação como os personagens do Woody Allen em Paris.

    Freud, se estivesse vivo, explicaria essa angústia ao mostrar a dificuldade de conciliar as demandas do corpo e do outro, prejudicadas por um orgulho de quem não se deixa ultrapassar por uma máquina. A tecnologia digital, em si, não é opressiva, mas a competição contra sua velocidade e a submissão a suas demandas leva seu usuário a viver múltiplos papéis sem o tempo e a maturidade necessários para se mover entre eles.

    É preciso reconfigurar nossos servos digitais para que nos atendam, caso contrário nos tornamos escravos de sua eficiência. As novas tecnologias sempre mudaram a compreensão do tempo e do ambiente. Vivemos conflitos parecidos quando surgiram os livros, os automóveis e as máquinas a vapor. E, em linhas gerais, sobrevivemos.

    Como toda adolescência, a crise parece interminável. Até que um dia, para a alegria de todos, acaba.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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