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    Luli Radfahrer

    Um problema de interface

    09/12/2013 03h00

    Há uma unanimidade mórbida entre os críticos da mídia. Jornais e revistas, de acordo com as opiniões de especialistas dos mais variados calibres, estariam com os dias contados. A popularidade de tablets e leitores de e-books, o fechamento de jornais de tradição e a compra do Washington Post pela Amazon seriam argumentos inquestionáveis para marcar o fim daquele que um dia foi chamado de "quarto poder".

    Outra indústria similar em crise é a de publicação de livros. Editoras, que já foram sinal de prestígio por seu repertório de autores, hoje sofrem para manter a reputação entre epidemias de livros místicos, sensacionalistas ou das várias categorias de autoajuda. Como se não bastasse, diversos autores recorreram à publicação, comercialização e distribuição de seus textos em formatos digitais, cansados de esperar pelo atendimento em empresas cada vez mais dominadas pelo pragmatismo de seus setores comerciais.

    A Escola é outro saco de pancada contemporâneo. Jovens como Mark Zuckerberg fundam seus Facebooks ignorando completamente o compromisso que teriam com as universidades responsáveis por "formá-los". Velhos como Luis Inácio se orgulham do fato de terem chegado à presidência da República sem terem lido livros ou frequentado salas de aula como seria recomendado.

    Médicos, que já tiveram a importância digna de doutores, hoje são dignos de pena quando se leva em conta os baixos salários, as cargas horárias exaustivas, a falta de recursos e a precariedade da rede. A profissão é desrespeitada a ponto de importar profissionais de outros países para resolver os problemas nacionais, desqualificando a formação de nossas escolas e hospitais. Em clínicas e consultórios, cada hora marcada é um embate entre o Dr. Google e o convênio, desrespeitando as necessidades daquele que merece o nome de "paciente" e do indivíduo física e mentalmente esgotado em seu avental, muitas vezes reduzido ao papel de burocrata da saúde, a preencher pedidos de exames e receitar remédios que o próprio paciente pediu.

    A vida tampouco é fácil para outro profissional que, como médicos e professores universitários, é chamado de doutor por tradição: o advogado. Por mais que Joaquins Barbosas tentem resgatar a nobreza da profissão, a impressão que os paletós e o linguajar complicado desses profissionais costuma deixar é a de alguém que se esconde por trás de páginas e páginas de verborragia e citações cruzadas para defender ideias que, data venia, ad argumentandum tantum, são controversas. In verbis, ex vi legis, não há dolo na facultas agendi de se consultar argumentos digitais antes de, mutatis mutandis, pedir deferimento. Pensando bem, deveria ser obligatio faciendi em condições de Habeas Data. Qui tacet, consentire videtur.

    Não há, entre tantas unanimidades, pessoa esclarecida que duvide da importância do Jornalismo. Grandes reportagens, análises e denúncias continuam a ser parte fundamental da relação desenvolvida com o mundo em volta. Da mesma forma o trabalho de seleção, lapidação e curadoria de textos editoriais é tão fundamental quanto invisível. Bons editores, como bons maestros e diretores de cinema, são capazes de identificar trabalhos excepcionais e torná-los preciosos.

    Por mais que as salas de aula, museus e bibliotecas precisem de uma boa revisão, não há quem acredite sinceramente que tenha nascido pronto e que não demande aprimoramento. Bruce Lee e Maria Callas tiveram seus professores, da mesma forma que funkeiros e jogadores de futebol sabem que não serão capazes de manter suas carreiras por algum tempo sem uma boa preparação. Mesmo quem se recusa a ler não pode negar a importância do aprendizado prático em negociações e debates. Até os mais radicais no Afeganistão, Irã e Coreia do Norte não abrem mão das conquistas da Medicina, mesmo acreditando que seus deuses estariam a seu lado. No mundo dito civilizado, o estado de Direito é o que garante que não se degenere para guerras civis ou carnificinas de selvageria sem precedentes.

    Direito, Medicina, Educação, Editoração e Jornalismo são conquistas inegáveis do mundo civilizado. Ninguém de bom senso acredita que pode viver sem elas. Se hoje seus profissionais são vítimas de tantas críticas e ataques, a maioria exagerados e injustos, é porque não conseguem comunicar com precisão o que fazem, para que servem e qual é sua importância.

    Enfrentam, nos termos atuais, um problema de interface. Enquanto não o corrigirem, continuarão vítimas de quem gostaria de ter acesso a seu conhecimento, mas não faz ideia de como fazê-lo.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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