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    Luli Radfahrer

    Educação sentimental

    06/01/2014 03h00

    Tio Shakespeare entendia um bocado de Amor. Assim, com "A" maiúsculo, poucos trataram tão bem do tema quanto ele. Seja na forma intensa como o de Romeu por Julieta, doentia como o de Otelo por Desdêmona ou insana como o dos personagens enfeitiçados de Sonho de Uma Noite de Verão, sua crônica eloquente do amor cortês foi, por muito tempo, inspiradora para muitas narrativas românticas.

    Da Ilíada ao Taj Mahal, muito foi dito e feito em nome do Amor e do processo de fazer a corte, o balé social que caracteriza o comportamento de aproximação, sedução e interação social entre duas pessoas. Seu objetivo, independente da cultura ou época, sempre foi promover o conhecimento entre os futuros parceiros antes da tão desejada união de corpo e mente.

    Por mais que não existam amantes iguais e que personalidades tão diferentes quanto Carmen, Anna Karenina, Indiana Jones ou Mickey Mouse tenham suas formas particulares de se aproximar de seus próximos, muitos elementos da mesma dinâmica podem ser identificados.

    Até o psicopata Christian Gray dos 50 tons de Cinza, com suas perversões e contratos, tinha um charme sedutor.

    Em tempos de Facebook, Silicone e Viagra, que as relações ganham uma virtualidade que transcende personalidades, corpos e libidos, é difícil identificar o que seria um comportamento adequado de corte. Desde que surgiu a opção de "ficar" com alguém, as relações ganharam um ar pragmático, perdendo no processo muito da velha sedução.

    O altruísmo e a generosidade dos apaixonados vem sendo rapidamente substituído pelo egoísmo e ganância dos colecionadores de corpos, em um capitalismo sentimental que tende a deixar muita gente, especialmente entre os mais novos, magoada, com a sensação de que algo não está certo, de que falta generosidade na interminável bacanal contemporânea.

    Sensíveis e tímidos, se sentindo incompreendidos, muitos resolvem seguir um dos vários ensinamentos tortos das religiões ocidentais e, associando castidade a virtude, abrem mão do contato físico e recorrem a mundos virtuais de simulação como o de Warcraft. Livres do fardo mortal de suas obrigações corporais e das amarras impostas pelos ambientes de socialização, eles podem ser Cyrano de Bergerac e, através de avatares, mostrar seu verdadeiro eu. Ou como Abelardo e Heloísa, se relacionar por bilhetinhos para desfazer as besteiras do seu amor.

    Na pior das hipóteses fazem como o jovem Werther, descrevendo toda a sua dor antes de por fim à própria vida.

    No extremo oposto estão os que abrem mão de toda e qualquer preliminar e recorrem às trevas de Lulu, Down, Tinder e Grindr. Ali não há fogo que arda sem se ver nem ferida que doa e não se sinta. Sem vergonha nem culpa, o contato regride ao tacape Neandertal, agora mediado por iPhones, Photoshop e funk.

    A serviço do amor, a intimidade física produz conhecimento mútuo. Quando saudável, o desejo de agradar e de ser agradado tem quase a mesma medida, em busca de compartilhamento e compreensão do próximo. Em última instância, é uma forma extrema de desapego.

    Desprovida de sentimento, a relação sexual assume extremos doentios como a castidade ou a luxúria, comportamentos opostos ao amor por serem egoístas, gananciosos e, não raramente, cruéis. A essência da satisfação e do controle dos próprios impulsos não envolve mutualidade.

    Na forma de Eros (desejo), Philos (interesse) ou Ágape (caridade), o amor sempre se caracterizou por um antagonismo entre os impulsos do ser e ter, e essa dinâmica conferiu ao Homo Sapiens muito de seu progresso intelectual.

    Já os maus amores, sejam pelo objeto errado –como o dinheiro ou qualquer outro fetiche– ou na medida errada, subestimando ou supervalorizando o próximo, sempre levaram a distorções perniciosas.

    Mas talvez eu seja um dos últimos românticos.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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