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    Luli Radfahrer

    Sobre "Roritas" e mulheres-objeto

    24/03/2014 03h30

    No recente filme "Ela", o protagonista Theodore se divorcia e, desorientado, compra um sistema operacional, Samantha, para ajudá-lo a organizar a vida. Não demora para, no melhor clichê de comédia patrão-secretária, rolar um clima.

    Muito papo de boteco foi alimentado pela possibilidade de relacionamento entre um ser humano e um produto tecnológico. Pouco, no entanto, foi dito sobre se possuir um ser consciente. Se transportados para "12 anos de Escravidão", os diálogos de Theodore e Samantha provocariam um razoável desconforto.

    O filme de Spike Jonze não é o primeiro a mostrar uma relação entre uma pessoa e um objeto. Nem a descrever uma inteligência confortável na submissão. A computação e a cultura pop têm um longo histórico de agentes inteligentes, normalmente femininos, em papéis de suporte.

    Cartunista Alpino

    Um dos primeiros programas de inteligência artificial a realizar tarefas e tentar interpretar a linguagem surgiu nos anos 1960 e foi chamado de Eliza, em referência à personagem da peça "Pigmaleão", de Bernard Shaw, popularizada como o musical "My Fair Lady" e inspirada no mito grego de Pigmaleão, que se apaixona por uma de suas esculturas. Na peça, um professor de fonética aposta que pode treinar Eliza Dolittle, vendedora de flores pobre e inculta, a se fazer passar por uma duquesa, bastando para isso "corrigir" seu uso da língua.

    Se a história de "Ela" parece absurda, vale conhecer o "LovePlus+", game japonês para Nintendo DS.

    O jogador assume o papel de um jovem adolescente que procura namorar uma das três garotas que conhece em sua nova escola: a meiga e estudiosa Manaka Takane; a solitária e agressiva Rinko Kobayakawa; ou a bonitona Nene Anegasaki. Nenhuma é de verdade.

    Cada personagem se desenvolve de acordo com os desejos de seus namorados. Mas isso não quer dizer que sejam fantoches, elas demandam ser tratadas com respeito, e não hesitarão em brigar caso se sintam negligenciadas. O game procura recriar a experiência de amor adolescente, por isso não é fácil conseguir um beijo, e nudez ou sexo estão completamente fora de questão.

    Simuladores de encontros são populares no Japão desde o começo da década de 1980. Normalmente, terminavam quando a moça era conquistada. Em "LovePlus+", o jogo nunca acaba. As moças esperarão por seus amos até que eles desistam delas, criando relações mais duradouras do que muitos casamentos.

    Alguns jogam para se preparar para encontros reais, outros para se consolar frente a desilusões. Muitos são casados e buscam no jogo um reaquecimento da relação. A influência do jogo é tanta que há um botão para caso o jogador tenha impulsos suicidas.

    Não há muita inteligência emocional nesse modelo de inteligência artificial. Como as moças de "LovePlus+" e Eliza Dolittle, a Samantha de "Ela" (que também é o nome da "Feiticeira", outro personagem ficcional e servil com poderes mágicos) é, no máximo, uma gueixa. Construída para ser a esposa perfeita, ela nunca se cansa, sabe de tudo, antecipa os desejos de seu amo e sempre está disponível como amiga ou objeto sexual. E pode ser despachada com um clique.

    Quando se cansa, não se revolta. Simplesmente vai embora. Não é uma visão de futuro inspiradora.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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