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    Luli Radfahrer

    O fim da inovação?

    14/04/2014 03h00

    Certas coisas não fazem o menor sentido. Pouco importa a lógica ou a perspectiva com que são tratadas certas notícias, o fato de startups como Snapchat esnobarem ofertas de aquisição de bilhões de dólares enquanto empresas de infraestrutura digital como Intel e Cisco apresentarem ganhos pífios mostra que o mundo digital parece ter, mais uma vez, perdido o contato com a realidade.

    A supervalorização das tecnologias de consumo, encabeçada por Facebook, Google e Apple, aumentou a fronteira entre o que é novo e o que é consolidado, entre o imediato e o futuro, o local e o global, fornecedores e consumidores. Em centros de inovação como o Vale do Silício, boa parte dos novos engenheiros de software não quer saber de grandes projetos estruturais de médio ou longo prazo. O que interessa para a maioria é fazer aplicativos e criar novas empresas, de preferência para vendê-las para um gigante qualquer e viver de rendas o quanto antes.

    Essa distorção esvazia segmentos menos descolados, como semicondutores, redes e bases de dados, e pode levar a uma situação preocupante no futuro próximo. Sem um bom roteador não há rede segura, sem uma boa placa gráfica, Netflix e videogames perdem o lustro, sem uma base de dados praticamente não se faz nada que preste.

    A explosão de produtos digitais de consumo que se vê hoje é fruto de muita pesquisa e investimento em descobertas científicas que, a curto prazo, não tinham a menor graça. No entanto quando combinadas, testadas e aplicadas, geraram as inovações quase mágicas que consideramos banais, como um GPS que obedece a comandos de voz.

    Este foi, por muitos anos, o elo que conectava o pragmatismo do mercado ao idealismo da pesquisa nas universidades. Ele vem sendo partido, em parte por serviços de computação em nuvem, APIs e algoritmos modulares que permitem a praticamente qualquer um a construção de um aplicativo.

    Chamam a esse processo de democratização do código, quando na verdade o que se vê é o contrário: uma concentração de poder na mão das novas grandes corporações e uma mediocridade crescente nos produtos e serviços que realizam cada vez mais do mesmo. Aplicativos que fazem o login pelo Facebook, usam mapas do Google e só funcionam em iPad podem ser fáceis de fazer, mas tornam seus desenvolvedores e usuários reféns dos latifúndios digitais.

    Boa parte das novas e alardeadas invenções, tão populares quanto breves, tem pouquíssimo de novo. A maioria é tradução do clone da cópia da reprodução da releitura de algo que já era velho. Da mesma forma que os filmes de ação de Hollywood e os novos livros épicos de realismo pseudo-fantástico, as novas manias digitais parecem seguir uma mesma fórmula manjada, rasa e irrelevante.

    A inovação, que um dia já foi quase exclusivamente técnica, hoje é movida principalmente por ideias. Por mais democrática que pareça, ela não se sustenta. Ainda mais quando dirigida por CEOs vindos de áreas não ligadas ao desenvolvimento de tecnologias, com sua mania besta de pensar em suas empresas em termos mais grandiosos do que recomendaria a vã tecnologia.

    Essa megalomania cria aplicativos que se julgam capazes de "hackear" problemas que só serão verdadeiramente resolvidos com esforço contínuo e grandes parcerias institucionais: liberdade de expressão, educação universal, saneamento básico, saúde pública, acesso a serviços financeiros, tratamento de narcodependência, responsabilidade fiscal etc. Na forma com que existem hoje, não são mais do que paliativos, que podem piorar os problemas que se propõem a resolver.

    Tecnologia é canal, não método. Ela não pode resolver, sozinha, todos os problemas do mundo. Ainda mais se estiver mais preocupada com a flor do que com a raiz. De pouco vale uma população que tenha mais telefones do que vasos sanitários se não houver um uso construtivo desses tamagotchis.

    Por mais que pareçam indestrutíveis, nenhuma das tecnologias existentes continuará para sempre. Empresas privadas, como dinastias e impérios, não são imortais. Confiar a elas todo desenvolvimento técnico e herança cultural do mundo não me parece muito sábio.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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