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    Luli Radfahrer

    Vinte e tantos

    12/05/2014 03h33

    É chato ter vinte e tantos anos. Ainda mais quando todo mundo insiste em dizer que tenho vinte e poucos anos. Vocês não entendem.

    Eu acredito ser empreendedor, tolerante e criativo. Você me vê como alguém preguiçoso, que acredita ter mais direitos do que deveres. Os dois retratos são caricaturas. Nem todas as minhas fotos são selfies, nem toda bebida que tomo é energética, nem toda música que ouço é eletrônica. E sou mais duro comigo e com os meus pares do que você imagina.

    Me chamam de "nativo digital" porque cresci rodeado de aparelhos inteligentes. É certo que minha vida social se fundiu com a eletrônica, que não vivo sem o meu celular, mesmo achando que falar ao telefone é quase falta de educação. Prefiro mandar fotos e mensagens de texto, até porque posso fazer isso para várias pessoas ao mesmo tempo. Estou sempre conectado, durmo e acordo com o celular. Sei que isso incomoda você, mas não consigo evitar. Do meu jeito, estou prestando atenção em você.

    O contato com o digital desde a infância mudou a minha forma de ver o mundo, de uma maneira que só agora começo a entender. Mas minha identidade é maior do que isso.

    A vida nas grandes cidades me tirou das brincadeiras na rua e na lama, mas me deu em troca um pluralismo sem precedentes entre indivíduos de diferentes etnias, gêneros, crenças, partidos e preferências sexuais. Riquezas são diferenças.

    Meu primeiro contato com a diversidade aconteceu dentro de casa. Minha mãe tinha voz mais ativa do que a sua e meus pais, separados, trouxeram amigos de todos os tipos para conversar comigo. Mas nem tudo era bom. Meus pais trabalhavam demais e, culpados, compravam tudo o que o mercado dizia ser bom pra mim. A publicidade me convenceu de que seria possível atingir a felicidade através do consumo. Na ordem social que me mostraram só existia uma coisa pior do que a dominação do mercado: a exclusão do mesmo.

    Meus pais foram treinados para desejar uma carreira estável, mesmo que o resultado fosse desagradável e pouco ético. Sua expectativa era que vários anos de trabalho duro levariam a um bom emprego, disseram pra mim que o sucesso era só uma questão de formação e tempo. Eu acreditei e fui para a escola.

    E fiquei nela por mais tempo do que todas as gerações que me precederam. Ela me ajudou a ver que os problemas do mundo, como Aids e mudanças climáticas, deveriam ser resolvidos sob a perspectiva da ciência, não de um preconceito qualquer. Cresci aprendendo as consequências desastrosas das decisões humanas sobre o meio ambiente e observando mudanças climáticas assustadoras. Talvez por isso que eu goste tanto de super-heróis. E de histórias com vampiros e zumbis. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

    Às vezes eu sinto que não pertenço a esse mundo. Aquele que me prometeram é bem diferente –mais limpo, mais justo, mais divertido, cheio de oportunidades.

    Por isso que sou tão insatisfeito. Não me contento com a migalha que me deram e me revolto contra uma Copa que não me representa. Acredito que posso fazer do mundo um lugar melhor, em que haja maior igualdade e oportunidades reais. Start-ups para mim são como bandas de punk rock. Quero criar a minha, não para ser um Zuckerberg, mas para quebrar tudo e mudar o mundo. Se ganhar algum no processo, até melhor.

    Não sou hippie. Mas a minha visão de sexualidade chocaria você. Não acredito no amor livre, mas também não vejo a monogamia como uma espécie de ideal. Procuro novas abordagens para a intimidade, definições de gênero e relações de compromisso. Você não entende o que eu chamo de "ficar". Meu mundo é multifacetado, poliamoroso, questionador, fluido, cheio de possibilidades. Navego em um terreno sexual totalmente aberto, mais ambíguo, cheio de oportunidades, livre das restrições de quem pode dormir com quem, ou do que é uma identidade sexual.

    Construo minhas relações à base de confiança e tolerância. Posso experimentar o sexo pelo sexo, sem vergonha nem culpa, na paz. Quero relações de longa duração, mas não me incomodo com a ideia de que essa relação pode não atender às necessidades emocionais e físicas de cada parceiro o tempo todo.

    Meu corpo é minha casa, nada me impede de decorá-lo como quiser. Moda, musculação, plástica, piercings e tatuagens foram feitas para isso. O corpo é meu, porque você, que usa botox e faz peeling, se incomoda tanto?

    Alguns de meus colegas, não posso negar, são egocêntricos e desinteressados de qualquer coisa que aconteça além do seu perfil nas redes sociais. Nenhuma geração é perfeita.

    Na maior parte do tempo estou tão perdido quanto você, mas não tenho medo de fazer perguntas. Só não as faço para vocês. Muitas vezes tenho vergonha de perguntar as coisas até para meus amigos, por isso apelo para o tio Google, que me ajuda a entender o que é cada novo assunto, cada novo serviço, como faço pra cozinhar um ovo, quem foi Getúlio Vargas, do que trata esse filme ou música. Pode até ser ridículo, mas eu não tenho muita gente pra perguntar, e você nunca está disponível. Você poderia fazer o mesmo antes de me criticar.

    Dizem que eu não tenho ambição, que tenho medo de virar adulto, que empurro com a barriga todos os compromissos que você chama de sérios. Isso em parte é verdade, mas ambição para quê? Pra trabalhar como você, assumir comportamentos vergonhosos em nome de uma "carreira" e buscar salários enormes para comprar uma casa grande, três carros, uma segunda casa e com isso me endividar e ter que trabalhar mais ainda?

    Você pode me inspirar ou até me enganar, mas não me compra. Gosto de barbas, boinas, óculos, bigodes, coletes, franjas e tudo que não encaixe nas definições que me empurram goela abaixo. Se a economia global está inchada, beirando o colapso e dependente do meu consumo para não quebrar, pois que quebre. A longo prazo, pode ser melhor para todo mundo.

    O trabalho não é minha religião. Não tenho religião. Sou a geração mais aberta e mais confusa em termos de crenças. Quero crer em algo, mas não faço ideia do que. Vi tantas instituições falirem a ponto de desconfiar de qualquer igreja, escola, família, trabalho ou governo que me apronte uma solução mágica.

    Até meu conflito de gerações é diferente do seu. Não sou radical, confio e até admiro quem tem mais de 30. Me dou muito bem com meus pais.

    Meu idealismo é pragmático. Pode parecer contraditório esse desejo de tornar o mundo um lugar melhor combinado com a compreensão de que isso só será possível trabalhando dentro das instituições existentes. Pra mim isso é uma forma de hacking.

    Eu me preocupo com a sua opinião. Ainda me importo um pouco demais com o que os outros fazem ou pensam. Acho que é uma insegurança natural, ainda não estou certo do que sou. Como dizia uma música da sua época, eu não sei o que quero, mas sei que vou conseguir.

    Você diz que não sei perder. Em parte isso é verdade, mas você conhece os jogos que venho jogando praticamente desde que nasci? Neles ninguém perde. Quando perde, tem outra vida ou pode recomeçar. Perder, aliás, é perigoso. Pode significar uma resignação e uma existência bovina que eu não compreendo nem aceito.

    Eu, que tenho de tudo, mais do que você sonhou, estou meio triste. Não é por ser mimado, não. É por estar só no meio de tanta gente. Eu sei que, por baixo dessa casca de intolerância e incompreensão, você é mais sábio do que eu e pode me ensinar a ver melhor o mundo. Respeito suas ideias e estou aberto a aprender com elas.

    Eu sei que todo mundo tem seu próprio ritmo , mas não me sinto um verdadeiro adulto. Quero que você me ajude a descobrir como crescer. Com sorte talvez até eu consiga te ensinar alguma coisa.

    folha@luli.com.br

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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