• Colunistas

    Friday, 17-May-2024 06:02:15 -03
    Luli Radfahrer

    O hoax Marina

    15/09/2014 02h00

    A situação não está boa para o governo federal: o mercado de trabalho desaquecido, crises de água e energia, inflação acima da meta e baixo crescimento, causados pela falta de reformas estruturais e pela política fiscal de baixa credibilidade fizeram com que seu índice de aprovação popular caísse para 31% em junho.

    É um número pior do que parece. Segundo o Instituto Análise, em levantamento de 104 eleições para governador ocorridas entre 1994 e 2010, todos os governadores que tiveram índices de aprovação igual ou maior do que 46% foram reeleitos, enquanto todos que tiveram menos de 34% foram derrotados.

    A mensagem não deixa dúvidas: uma democracia forte, mesmo jovem como a nossa, tem instituições que conseguem demandar mudanças, mesmo que não garantam escolhas certas. Distantes do eleitor, cargos políticos não são avaliados por capacidade técnica, mas pela percepção da realidade.

    O povo, indeciso entre um governo que não satisfaz e uma oposição que não convence, pode não saber o que quer, mas tem uma boa ideia do que não quer. Quando um completo desconhecido se transforma em mártir e todos os seus oponentes ganham a mídia para lembrar que morto nunca tem defeitos, a escolha está feita. Tempo de TV, em um país que lê pouco, sempre foi crucial.

    O problema é que a opção não estava no cardápio. Marina não era candidata, não tinha proposta nem equipe. Pouco importava. Com a força de um movimento social, tudo quanto é rumor, suposição e desconfiança ganhou as mídias sociais e, ali, se transformou em verdade. Ninguém se lembra de quando ouviu pela primeira vez que suas propostas não eram tão diferentes das de Aécio. Nem de quando aprendeu que seu governo seria um complemento à Era Dilma. Mesmo assim, em uma semana, sua candidatura era a favorita.

    Dos QGs do PT e PSDB ao governo da Venezuela, o súbito crescimento de Marina provocou desespero. Em pânico, chegaram a compará-la a Jânio Quadros e Fernando Collor. Dilma afirmou até que Marina entregaria o comando do Banco Central aos banqueiros, esquecendo temporariamente que o chefe do Banco Central no governo Lula foi Henrique Meirelles, ex-presidente do BankBoston.

    Assustados pelo poder de influência das redes sociais, todos os partidos montam equipes para monitorá-las e desmentir boatos. Processos e ações judiciais contra portais e redes tentam intimidar qualquer insolente. Essas atitudes dificilmente terão efeito. Podem até limitar algum autor, mas não eliminarão o rumor, que, misturado a notícias de fontes confiáveis e comentários de pessoas respeitáveis, se torna indiscutível.

    Em um ambiente de múltiplas fontes de informação não é viável reprimi-las. Por isso é tão importante verificar sua veracidade. Na língua inglesa, um "hoax" é uma notícia fabricada, sem relação com a realidade. Ao longo da história, eles tiveram várias formas. Falsos encontros históricos, como o de Dickens com Dostoiévski, falsos dados militares, como o tamanho do arsenal nuclear russo, bobagens pseudo-científicas, como a noção de que a linguagem falada afeta a forma de pensar, e histórias fantásticas, como a narração de uma invasão marciana por Orson Welles em 1938 fazem parte do folclore urbano. Quanto mais modestos e despretensiosos, mais convincentes.

    Na Internet, em que todos podem ser mídia, esse tipo de falsificação é cada vez mais comum. Seus efeitos estão longe de ser inocentes. Aos poucos, os regimes totalitários percebem que mentiras desse porte podem transformar a Internet em forte aliado para criar confusão. Quando a censura à imprensa se encontra com a cultura de entretenimento, o jornalismo se transforma em realidade fantástica, pronta para contestar qualquer verdade sem propor alternativa, tornando o consenso impossível. É o que se vê na confusão provocada pelo lobby da indústrias de Tabaco e pelos opositores às mudanças climáticas.

    A Rússia é um dos melhores exemplos dos efeitos da guerrilha de desinformação. No governo Putin, mentiras e fraudes somam-se à pirataria e sabotagem digital para reinventar a realidade, criando alucinações transformadas em ação política. A propaganda ideológica, que tem suas raízes na política soviética, ganhou, com a Internet, uma escala inimaginável. O resultado é digno dos grandes contadores de histórias russos.

    Um deles, Chekhov, escreveu uma história em 1900 com valores aplicáveis à situação atual. Nela, o pai de um falsificador tem sua reputação destruída por passar adiante sem intenção o dinheiro impresso pelo filho. Arrasado, ele perde a confiança em seu próprio julgamento e cai na miséria, incapaz de guardar dinheiro por não ser capaz de separar notas verdadeiras de falsas.

    Na virada do século 20, Max Weber percebeu que o Estado progride da autoridade carismática, baseada na relação de confiança entre o líder e seu rebanho para uma baseada em tradições, e desta para uma baseada em conhecimento e competência, típica das democracias contemporâneas.

    Na Economia da Informação, a confiança é o maior valor. Se nada é verdadeiro, tudo se torna possível e corre-se o risco de criar uma crise institucional. Sem instituições confiáveis, a única opção é o retrocesso à figura do líder carismático, tão comum na pobre América Latina.

    Boa parte das histórias fantásticas da Internet explora a preguiça dos leitores, criando narrativas boas demais para serem verificadas. Tudo que seja divertido, verossímil, desejável ou assustador é compartilhado, com o aval de quem transmite a história, sugerindo que seja digna de consideração.

    Campanhas publicitárias camufladas, chamadas de "marketing viral", não tem nada a ver com liberdade de expressão. Seu efeito não é apenas uma perda de tempo, mas uma quebra na confiança na notícia, anestesiando para o que é realmente importante.

    Quando a verdade se torna menos importante do que a "viralidade", a realidade é ameaçada e, com ela, a confiança que constrói qualquer sociedade.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024