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    Luli Radfahrer

    Em defesa do vídeo vertical

    13/10/2014 02h00

    Smartphones e tablets transformaram todo mundo em diretor de vídeo. Tudo é motivo de gravação: amigos, família, gatos, cachorros e, naturalmente, o espelho. Nesse processo era previsível que surgissem novas formas de registro de imagens, como o uso de câmaras na vertical. O resultado é um tipo de vídeo incomum, com duas grandes barras pretas na lateral, que provoca desconforto em muita gente.

    Os argumentos contra o vídeo vertical são vários. Os principais alegam a tradição do formato e a anatomia da visão, que nos torna capazes de ver terrenos mais largos do que altos. Muitos defendem que a proporção deveria ser um padrão universal, jamais questionado. Chegam até a propor telefones e tablets que mudem automaticamente a orientação de suas câmaras, forçando seus usuários a gravar imagens na horizontal. O que pouco se sabe é que os motivos que geraram essa proporção são bastante arbitrários.

    Características técnicas do meio sempre interferiram na formatação das imagens. Nos anos 1890, logo que a Kodak começou a produzir o filme flexível, surgiu o desejo de registrar o movimento. Em colaboração com Thomas Edison, engenheiros da empresa registraram imagens animadas nos mesmos filmes de 35 mm usados para a fotografia. Surgia a proporção "clássica" de 4x3, ou 1,33:1, em que a imagem é um terço mais larga do que alta.

    Alguns anos depois, para dar espaço para a trilha sonora dos novos filmes falados, cortou-se um pouco da imagem no eixo vertical, mudando a proporção para 1,37:1. Clássicos do cinema, como Casablanca, Cidadão Kane e O Mágico de Oz, foram gravados nesse formato.

    Nos anos 50, uma novidade tecnológica forçou o cinema a inovar de formato. A TV invadiu as casas, levando com ela a proporção de imagem usada nos filmes. Em crise repentina, a indústria de cinema precisava trazer os espectadores de volta, e para isso recorreu a uma variável que não se poderia ter em casa: o tamanho. Surgiriam daí as invenções que popularizariam a horizontal.

    Derivado de um simulador militar, um Frankenstein chamado "Cinerama" era composto de três câmaras e três projetores, capazes de captar imagens na proporção de 2,59:1, ou mais de duas vezes e meia mais largas do que altas. Projetado em tela curva, ele fez um enorme sucesso. Mas era caro demais, tanto para produzir quanto para projetar, forçando estúdios a buscarem alternativas.

    Algumas eram pura gambiarra. O western "Shane", por exemplo, foi filmado no processo convencional, depois ampliado e cortado para chegar à proporção de 1,66:1. Novas lentes chamadas "anamórficas" comprimiam a imagem na horizontal para depois expandi-la, criando o CinemaScope. Com proporção de 2,66:1, o formato era ainda mais largo do que o Cinerama. Os filmes de "Guerra nas Estrelas" usaram esse recurso.

    Outras invenções da época optaram por registrar as imagens de lado, para depois revertê-las na projeção. VistaVision, a mais popular delas, foi usada em "Os Dez Mandamentos" e boa parte dos filmes de Hitchcock. Sua proporção? 1,85:1.

    Outra solução foi dobrar a largura do filme. Em 70 milímetros, "A Noviça Rebelde" e "2001" encheram os olhos das plateias com sua proporção de 2,20:1. "Ben Hur" chegou a quase 3:1.

    Mas nenhum desses formatos corresponde aos 16x9, ou 1,77:1, das TVs modernas. Ele surgiu, por incrível que pareça, da média entre a proporção dos filmes mais populares no cinema e a das velhas TVs (e também de monitores de computadores, câmaras digitais e dos primeiros celulares), garantindo barras pretas de igual tamanho, pouco importasse o formato original. Essa nova proporção influenciou novos tamanhos de aparelhos e conteúdos. O resultado é a babel de formatos que se vê hoje, cada qual com relativo grau de razão e influência.

    Antes de surgir a câmara fotográfica, ninguém falava em padrão de proporção. E mesmo depois de sua invenção, formatos quadrados tiveram vários momentos de popularidade, o último deles com o Instagram que, como o Vine, ressuscitam o quadrado. Todos estão certos, menos aqueles que, por qualquer motivo, se considerem donos da verdade e persigam os autores de vídeos verticais.

    Na Europa, novos cineastas exploram o formato vertical como uma nova fronteira para o cinema. Festivais como o Vertical Cinema projetam imagens imponentes, do chão ao teto, repensando espaços de projeção e formas de participar dela. Enquanto velhos críticos pessimistas decretam a morte da Sétima Arte, eles propõem futuros em novos eixos, agora livres dos meios físicos de captação.

    Qualquer que seja o formato, não se pode esquecer que a tela é apenas o suporte para contar histórias. Se forem boas, como as de Chaplin, sobreviverão mesmo mudas e em preto e branco. Se forem ruins, não haverá 3D ou IMAX que as salvem.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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