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    Luli Radfahrer

    O que há de errado com eles?

    DE SÃO PAULO

    03/11/2014 02h00

    O bate-boca que ocorreu nas mídias sociais durante as eleições é o exemplo mais recente de um fenômeno cada vez mais comum: a virulência e o baixo nível dos comentários feitos por pessoas normalmente bem educadas. O que há de errado com essa gente?

    A democratização da rede trouxe com ela a oportunidade de ampliar a participação do leitor, levando o debate para muito além do tradicional discurso da mídia. Muitos comemoraram a "revolução" anunciada, uma oportunidade inédita de participação pública que criaria discussões de maior abrangência e profundidade do que cabia no limitado espaço da mídia.

    Não foi bem isso o que aconteceu. O tom das opiniões contraria qualquer ideia de civilidade. Na maioria das vezes, o que se vê são minorias antagônicas gritando umas contra as outras, evitando meios-termos. Ao permitir comentários impulsivos, ainda menos deliberados, os dispositivos móveis pioraram a situação.

    Boa parte dos protestos não se referia ao conteúdo, mas ao "direito" do autor em escrevê-lo, buscando desqualificá-lo com os piores argumentos possíveis. Muitos mal chegaram a ler o texto que criticam, baseando sua interpretação no título e um ou dois parágrafos.

    O problema é maior do que um simples bate-boca. A natureza das opiniões tem um grande poder de influência sobre a interpretação do texto, que pode ser tomado como incorreto, tendencioso, panfletário ou desatualizado. Isso aumenta a desinformação.

    O viés de interpretação sempre foi social. Durante um curto período histórico, a mídia assumiu o papel de intérprete das notícias dignas de registro. A princípio nas editorias impressas, passando pelos apresentadores dos programas de rádio e culminando com a figura do âncora de telejornais, para o qual não há equivalente no mundo real.

    Presença de autoridade na sala de todas as casas, ele sempre parece saber o que é apropriado dizer, de forma elegante, cautelosa e diplomática. Sem ele, ficamos perdidos.

    Hoje o consumo da mídia se transformou. Não se lê mais o jornal por conta própria, na mesa do café. A notícia é consumida em ambientes compartilhados, em que comentários de todo tipo são expressos antes e durante a leitura do texto. A interpretação não é mais individual nem influenciada pelo âncora, mas coletiva. É natural que gere confusão.

    Na vida real a interpretação de sinais sociais é aprendida lentamente. O mesmo acontece nos ambientes on-line de códigos de conduta restritos, como fóruns técnicos e massivos multiplayer. Nas redes sociais tal código ainda está em construção.

    O assunto é complexo e cheio de nuances. Ainda mais quando se leva em conta que muito do que garante a receita de veículos digitais é a publicação de anúncios, determinada pelo volume de leitores que visita uma página. É difícil criar uma discussão construtiva quando qualquer polêmica, mesmo que vazia, é muito mais rentável.

    Algumas tentativas de resolver o problema só pioram a situação. Sua origem não está nas novas tecnologias, mas na falta de estratégias de melhorar a qualidade do debate.

    A longo da História, culturas diferentes costumavam se encontrar em fronteiras. Nos portos, cercas e desertos havia um espaço e tempo de reflexão que forçava o visitante a reconhecer que não estava mais em casa, e que portanto deveria se comportar de acordo com regras de civilidade.

    Na aldeia global do Facebookistão as barreiras entre a casa e a rua, o particular e o coletivo, o público e o privado se desfazem, dissolvendo com elas o respeito ao espaço e valores alheios.
    Acredito que seja uma fase de transição. Tudo ainda é muito novo. A opinião dos outros, quando construtiva, é sempre enriquecedora. Mesmo que seja dolorida.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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