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    Luli Radfahrer

    O mito da neutralidade tecnológica

    08/12/2014 02h00

    A internet trouxe muitas coisas louváveis, mas não se pode dizer que a transparência esteja entre elas.

    Vivemos em uma época assustadora. Praticamente não passa uma semana sem que apareçam novas evidências de vigilância, coleta de informações e vazamento de dados pessoais. Parece não haver opção para a vida social contemporânea a não ser aceitar a erosão da privacidade face à impotência contra corporações e governos.

    Muitos ainda creem que a tecnologia é neutra, página em branco, substrato cultural à espera de forma. Mas isto é uma racionalização, justificativa em retrospecto que ignora a realidade. Tecnologias libertárias podem escravizar, da mesma forma que técnicas de conscientização podem ser usadas para manipular.

    A distância e a diferença entre homem e máquina sempre ajudaram a desenvolver um distanciamento crítico. Por mais que representem a fina flor da técnica, não é comum vermos pessoas "apaixonadas" por Boeings 777, turbinas eólicas ou equipamentos de tomografia. Pouco importa o design do produto se a qualidade não for satisfatória. "Bonitinho, mas ordinário", diria qualquer avó.

    Nos aparelhos pessoais a fronteira é mais tênue. O smartphone não é temido nem admirado. Ele é considerado parte da identidade, central nas relações pessoais, fundamental para a expressão criativa, para manifestações artísticas e para boa parte das atividades lúdicas que até há pouco eram exclusivas do ser humano. Sem eles, a vida é cada vez mais um martírio.

    Essa intimidade é tão sedutora quanto perigosa. Em breve, será expandida para uma nova fronteira: a Internet das Coisas, que promete colocar o ser humano no centro do mundo tecnológico, rodeado por satélites autônomos.

    A ideia pode soar pacífica e até progressiva, mas na realidade oculta uma forma de vigilância camuflada na linguagem dos eletrodomésticos. Não é mais a velha sociedade de consumo, mas uma rede materializada, uma forma silenciosa e interativa de espionagem. É sempre bom lembrar que os verdadeiros clientes de Google e Facebook não são quem chamamos de "usuários", mas os departamentos de marketing que comercializam seus dados.

    No início da era do computador, Alan Turing sugeriu que, para se passar por gente, a máquina não precisaria replicar a inteligência humana, bastava imitar as reações das pessoas. Mesmo que as máquinas do futuro demorem a desenvolver uma superinteligência, não será difícil que se torne um dos melhores atores do planeta. Quando chegarem a esse ponto, muitos passarão a tratá-las mais como seres vivos do que como coisas. Criticá-las, nesse ponto, será ainda mais difícil. Se nada for feito, quem discordar delas provavelmente será ignorado, contornado, transformado em peça de museu.

    É preciso desenvolver um distanciamento crítico das maquininhas sedutoras que nos cercam para que seus avanços ofereçam benefícios para todos. O melhor caminho para isso é acabar com a devoção cega e começar a demandar um comportamento melhor das ricas empresas que fornecem cada tecnologia.

    Ao longo da história, pensadores e artistas tão diversos quanto William Blake, Mary Shelley, Charlie Chaplin, Friedrich Nietzsche, Fritz Lang, Fernando Pessoa e Samuel Beckett mostraram que a máquina demanda respeito e controle. É um ponto de vista muito atual, fundamental para uma época em que, pela primeira vez fora da ficção científica, se vê a definição do "humano" como algo pejorativo.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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