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    Luli Radfahrer

    O ano mágico de 2015

    13/01/2015 02h00

    Se eu pudesse voltar no tempo, voltaria para 2015. Há 35 anos o mundo era fascinante, muito mais rico e cheio de oportunidades do que os tão falados "loucos" anos 1920.

    O mundo estava meio de ressaca, chamuscado por algumas crises financeiras e apreensivo com relação ao futuro. Não era para menos. O que eles chamavam de internet na época estava começando a acordar e, em uma década e meia, já tinha provocado mais transformações no cotidiano do que boa parte dos séculos anteriores. Naquela época já havia quase dois bilhões e meio de pessoas conectadas, e mais de 85% da população do planeta tinha um aparelho de comunicação pessoal.

    O século que começara com o "bug" do milênio encerrava uma época de trevas, em que pouquíssimos tinham acesso à informação, controlada por indústrias e hierarquias poderosas, com nomes pomposos como Direito e Universidade. Uma enorme burocracia, estabelecida com o único intuito de controlar a distribuição de conteúdo e determinar quem tinha o direito de exprimir sua opinião, começava a ruir.

    Conquistas impensadas no passado tinham se tornado cotidianas. Já era possível, com algumas restrições editoriais e linguísticas, ter acesso a qualquer tipo de informação, ver mapas detalhados de praticamente todo o planeta, consultar uma enciclopédia completa e atualizada, assistir a uma TV personalizada e comprar em lojas virtuais –para citar apenas seis das milhares de inovações disponíveis na época. Não era à toa que muita gente, atordoada, acreditava que boa parte do que poderia ser criado já tinha sido inventada.

    A rede tinha se profissionalizado, mas ainda não tinha perdido sua característica romântica. Naquela época se cultuava a figura mágica do "empreendedor", uma mistura de microempresário com caubói. Munidos de pouco mais do que um punhado de ideias e uma mistura de arrogância e irresponsabilidade típicas de quem não entende que certas coisas podem ser impossíveis, esses inventores começaram o século quebrando tudo: comunicação, entretenimento, manufatura, turismo, logística, comércio e boa parte das instituições que, consolidadas ao longo do último milênio, pareciam eternas.

    É certo que, na época, muita coisa ainda estava por mudar, em especial nas áreas de política, medicina, energia e finanças. Mas já havia na cabeça de boa parte da sociedade a certeza de que essas instituições, como as outras, estavam com os dias contados.

    Naquela época, a proto-história da rede, boa parte das inovações ainda eram amadoras e precárias. Algumas empresas já tinham se consolidado. Mas seu modelo de negócio ainda era hierárquico e baseado em competição. Nomes hoje desconhecidos como Facebook e Apple eram tão grandes quanto um dia o foram Rockefeller e Onassis.

    A maioria dos grandes produtos e serviços usados hoje ainda estava por surgir. E poderia ser construída a preço de banana. Boa parte dos ingredientes já estava disponível. Já havia computação em nuvem e sistemas de Inteligência Artificial. Watson da IBM e o carro do Google são mais ou menos dessa época. Sensores e circuitos Arduino e RaspberryPi eram vendidos em kits, acessíveis a qualquer um. Python e outras linguagens de programação que se tornariam as antecessoras de boa parte das línguas utilizadas hoje já eram razoavelmente populares. E cada vez mais gente se dava conta que a melhor forma de compreender os computadores era programá-los.

    Era fácil ser o primeiro em praticamente qualquer categoria. A expectativa do mercado era baixa, as barreiras eram irrisórias e as restrições, praticamente inexistentes. Tudo o que era necessário era um punhado de novas ideias e a teimosia para acreditar nelas enquanto todo mundo ainda queria inventar um novo telefone ou rede social.

    A internet parecia saturada, mas apenas nas áreas em que era visível. Boa parte das inovações de então nada mais eram do que uma adaptação tecnológica de práticas do passado. A Amazon poderia ser operada por um cliente de 1970. Um plano de mídia para o YouTube poderia ter sido desenvolvido em 1960.

    A mudança que ainda viria não era de tecnologias, mas de processos. A riqueza de serviços como AirBnB, Uber e Wikipédia veio de formas diferentes de pensar práticas antigas. Formas que, como o Bitcoin, não se contentaram simplesmente em "atualizar" os produtos e serviços, mas teimaram em desmontá-los e reinventá-los.

    Os primeiros 30 anos da internet criaram a base sobre a qual novas estruturas, impensáveis em sua riqueza e poder para os habitantes da época, se ergueriam. A fronteira estava aberta, e parte das estradas já existia. Poucos momentos na história foram tão ricos para inventores. 2015 foi o ano em que boa parte dos inventores do século 21 se inspirou. Não faltaram sonhadores que gostariam de voltar ao passado e viver em uma época tão prodigiosa.

    Pena que tão pouca gente que viveu nessa época se deu conta disso.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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