• Colunistas

    Monday, 06-May-2024 05:39:20 -03
    Luli Radfahrer

    Dois livros para compreender o mundo de hoje

    17/02/2015 02h00

    Confesso não ser muito fã do Carnaval. Para mim, o melhor da semana que antecede o real começo do ano é a pausa que dura de cinco dias a uma semana. O telefone não toca, ninguém atormenta e é possível se dedicar a uma boa leitura por horas a fio.

    Por isso aproveito o espaço dessa coluna, em uma semana que ninguém as lê, para falar de dois livros que li no ano passado. Eles tratam de economia e geopolítica. Seu escopo desvia um pouco da minha área, mas ao ajudar a explicar os loucos anos em que vivemos, eles tornam a observação de tendências digitais uma tarefa um pouco menos árdua.

    "O Capital no século XXI" - Thomas Piketty, Ed. Intrínseca. 672 páginas. Nas últimas décadas, muitos começaram a perceber que o capitalismo, em seus moldes tradicionais, criava mais problemas do que tinha se proposto a solucionar. O maior deles, a concentração de renda.

    Ao tratar do tema, Thomas Piketty passou de pesquisador quase desconhecido a celebridade instantânea. Sua fama é merecida. O calhamaço de quase 700 páginas é um soco no estômago, que deverá se tornar um clássico na área. Diferente das obras de Marx e Keynes, este é mais empírico do que especulativo. Ele contou com a Internet e o acesso a dados de vários governos ao longo de 15 anos, gerando uma base de dados gigantesca que mostra o fluxo de riqueza e produtividade pelo planeta nos últimos três séculos.

    A polêmica do livro está em sua afirmação categórica que o mundo está voltando para a sociedade patrimonial do século 19, aquela dos romances de Balzac e Jane Austen, em que a economia é dominada pelo patrimônio familiar, boa parte dele conquistado por presentes e herança.

    Para Piketty, a desigualdade vem crescendo abruptamente desde a última geração, e se concentrando em um pequeno grupo que vive do conforto de bens herdados ou ganhos enquanto o resto sofre para garantir um nível mínimo de sobrevivência. Segundo ele –e os dados são tão extensos, de fontes tão diversas, que é muito difícil questioná-los– as décadas que sucederam a Primeira Guerra Mundial não indicaram o caminho para o equilíbrio por crescimento do bolo econômico, mas um raro intervalo entre a desigualdade da Belle Époque e a contemporânea.

    Sua teoria desafia algumas das "verdades" repetidas extensivamente no discurso das economias ocidentais: que o crescimento e produtividade tornam cada geração melhor do que a anterior; que a desigualdade tende a se estabilizar e diminuir naturalmente; e que boa parte da riqueza contemporânea é resultado de mérito individual. Isso é mais exceção do que regra.

    Para quem se assusta com economês ou com discursos panfletários, um alívio. Há pouca matemática no livro, que tampouco demanda conhecimentos de economia. Apoiado em evidências, ele evita o discurso ideológico, buscando contribuir com fundamentos para um debate público essencial.

    É leitura obrigatória para quem se preocupa em entender e prosperar nos tempos contemporâneos, principalmente para os candidatos a empreendedores, que suam a camisa diariamente para que suas empresas cresçam, ainda que dependentes de clientes ou investidores mimados, que chegaram à posição que ocupam por um conjunto de relacionamentos e coincidências desde o berço.

    "As Origens da Ordem Política" - Francis Fukuyama, Ed. Rocco. 592 páginas. Como o capitalismo, a democracia também parece estar em crise. A explosão do fundamentalismo no norte da África e Oriente Médio, o sucesso da linha dura chinesa, o retrocesso truculento da Rússia, a influência dos grupos de interesses no governo dos EUA e a corrupção generalizada em países do terceiro mundo podem dar a impressão de que ela esteja com os dias contados. Não é verdade. O prestígio das instituições democráticas é tamanho que obriga ditadores a encenar eleições e manipular a mídia para fingir que são democratas e buscar alguma legitimidade.

    "A falência da Democracia é menos uma questão conceitual do que de execução. Se as instituições de um país são fracas, corruptas, incapazes ou ausentes, não há governo que se sustente. A paixão das ruas e redes pode ser suficiente para gerar primaveras e mudanças de regime, mas não se sustentará sem um processo demorado, caro, trabalhoso e difícil de construção institucional".

    A opinião é de Francis Fukuyama, autor do controverso livro "O Fim da História", que volta com uma pesquisa detalhada em dois tomos. Este que eu recomendo trata da evolução das instituições, dos hominídeos à Revolução Francesa. O segundo ainda não terminei de ler, quem sabe neste Carnaval?

    O livro defende um ponto que parece óbvio, mas que muita gente esclarecida teima em aceitar: que governos de sucesso são, como alguns países nórdicos, simultaneamente poderosos, restritos por leis e obrigados a prestar contas. Simples assim.

    O radicalismo crescente, visível nos absurdos que circulam nas redes, na imprensa e nos livros, mostra uma cegueira institucional que seria curiosa se não fosse trágica, e que se reflete em uma crença quase mística de que um dia viveremos em um mundo sem governos. Isto até hoje não se mostrou possível.

    Surdos à razão, movimentos digitais contemporâneos atualizam o velho ideário "hippie" de comunidade sem gestor, avessa à presença do Estado. Revolucionários de esquerda repetem o discurso anarquista do século 19, acreditando na dissolução do Estado como fator necessário e suficiente para o surgimento de uma utopia popular, sem levar em conta os regimes totalitários que surgiram dos destroços de todos esses experimentos sociais.

    Neoliberalistas e reacionários, por sua vez, sonham com governos mínimos ou inexistentes, regulados apenas pelas forças do mercado, aparentemente sem se dar conta de que tais paraísos de taxação mínima já existem na África subsaariana, e que, em vez de desenvolver o empreendedorismo, eles comprometeram qualquer investimento em infraestrutura, levando seus países à falência.

    Todos tem o direito de se queixar de burocracias e cartórios, políticos corruptos e defesas de privilégios. Mas a reforma deve se dar por dentro das instituições. Ignorá-las ou contorná-las é uma saída de emergência, e costuma deixar a situação ainda pior. Muitos assumem a existência do governo como uma condição "natural", mal necessário, se esquecendo de como é difícil criá-lo. E de como é importante mantê-lo.

    A situação no Iraque, Síria e Afeganistão não deixa dúvidas de que não basta simplesmente eliminar o ditador. A força de movimentos terroristas como o grupo autointitulado Estado Islâmico vem da mesma origem que conhecemos bem nos ambientes do tráfico: lugares de poder público inexistente, em que senhores tribais criam condições mínimas para a população carente.

    De onde vieram as instituições? Que forças as criaram, sob que condições se desenvolveram? Essas e outras questões são respondidas neste livro, com exemplos tão diversos quanto a China e a Hungria, em uma história grandiosa de uma das mais belas conquistas humanas: a formação do Estado, livre das alianças tribais e familiares, e sua luta contra elites poderosas que buscam sequestrá-lo e poluem o mundo com desinformação.

    Os dois são enormes. Tem mais do que o dobro das páginas de um "Harry Potter" ou um "Jogos Vorazes". Juntos, tem quase o tamanho da saga do "Senhor dos Anéis". Suas histórias, intrigantes e verídicas, são igualmente fascinantes. E ajudam a atribuir sentido ao enredo de realismo fantástico do carnavalesco mundo contemporâneo.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024