• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 03:46:12 -03
    Luli Radfahrer

    Tudo que é sólido desmancha no ar

    10/03/2015 02h00

    Há uma certa melancolia, um triste abandono em cada prédio centenário. Esteja ocupado, transformado em loja, restaurado, abandonado ou destruído, cada um deixa evidente a decadência newtoniana de uma construção que, grandiosa em seu concreto, estava destinada a retornar ao pó.

    Da mesma forma, a vida contemporânea muitas vezes parece à deriva no meio da implosão dos pilares conhecidos. Cada nova descoberta científica, revolução industrial, transformação demográfica e impacto ambiental questiona o que se tinha como certo e abre caminho para Utopias que nunca se concretizam.

    "Todas as relações fixas e congeladas, com seu rastro de preconceitos e opiniões, ancestrais e veneráveis, são varridas. Novas relações ficam obsoletas antes de se solidificarem. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Tudo o que é sagrado é profanado. Todos precisam encarar com serenidade sua posição social e relações recíprocas."

    O trecho acima poderia sintetizar o mundo de Facebook e Google se não tivesse sido escrito há mais de 150 anos. Trecho do famoso Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, ele se refere a um tempo parecido, em que a expansão social demandava uma revolução constante, ao mesmo tempo destruindo e criando novas forças pelo caminho.

    Marx e Engels não viveram para ver que sua proposta de transformação dinâmica inviabilizaria o ideal comunista que sonharam. Em 1982, o filósofo americano Marshall Berman revisitou o texto ao perceber a contradição implícita entre a liberdade individual e a estabilidade social, e usou a frase que abre esta coluna como título de um livro para falar das consequências da modernização. Para ele o indivíduo contemporâneo estaria destinado a viver em uma tensão perpétua entre desenvolvimento e decadência.

    O texto de Berman é bastante válido em uma época que unifica o planeta no turbilhão de ambiguidade e renovação, crise e renovação. Em culturas tão distintas como as de Uganda e Tailândia, Brasil e Polônia, pessoas de várias origens, ideologias e camadas sociais se veem presas a um ambiente que promete aventura, poder, divertimento, crescimento e transformação, ao mesmo tempo que ameaça destruir tudo o que se tem, o que se sabe, o que se é.

    Sem referências sólidas, a sensação natural é de uma profunda desorientação e insegurança, frustração e desespero, inseparável do enorme poder trazido pelas novas tecnologias. O mundo é simultaneamente melhor e pior do que já foi um dia. Como a vida adulta, ele é tão inevitável quanto precário, marcado por agitações e turbulências, expansões e decadências.

    Parte do desconforto vem de uma ideologia competitiva e individualista, que reforça e celebra o isolamento social. Elites patrimoniais e corporativas foram higienizadas, popularizando ideais de autoajuda em um hedonismo calculado e bem adaptado às demandas corporativas. O resultado é um cultura narcisista, depressiva e, em última instância, solitária.

    Incentiva-se o aumento de conexão sem interação física, o que cria uma nova forma de solidão. A mesma tela que conecta se transforma em barreira, como se o fato de estar mais perto dos outros tenha tornado todos antissociais. Freud, contemporâneo de Marx, chamaria isso de "dilema do ouriço". Como ouriços no inverno, as pessoas precisam estar próximas para combater o frio, mas não podem chegar muito perto para não se ferirem com os espinhos dos outros.

    Na tentativa de registrar essa transformação, movimentos artísticos tão diversos como Surrealismo, Cubismo, Futurismo, Construtivismo e outros "ismos" tentaram separar as técnicas e artefatos das relações sociais que os geravam e consumiam, transformando as pessoas em sujeitos e objetos da modernização. Seu retrato é de um indivíduo ao mesmo tempo maravilhado e impotente diante de tamanha capacidade.

    Da mesma forma que uma marcha a ré ajuda o carro a sair de um beco, olhar para o passado pode ser uma boa maneira de progredir. Relembrar os manifestos dos modernismos do início do século 20 pode contribuir com uma visão e coragem para criar novos manifestos. Amadurecidos pelas mudanças, eles podem inspirar uma renovação necessária para enfrentar as aventuras e perigos que se avizinham. Sem os aprendizados do passado não há perspectiva de futuro. Tudo o que sobra é um presente contínuo.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024