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    Luli Radfahrer

    Marketing de guerrilha

    17/03/2015 02h00

    A história é tão bem planejada que até parece ficção. Infelizmente é a realidade. O recém-lançado livro "A Fênix Islamista", de Loretta Napoleoni (Editora Bertrand Brasil), mostra um pouco da estratégia da organização terrorista que controla parte da Síria e do Iraque, autointitulada "Estado Islâmico" na tentativa de buscar alguma legitimidade para seus atos criminosos.

    Sua campanha de genocídio religioso e proselitismo agressivo é baseada no Salafismo, doutrina que prega a total rejeição da influência e dos valores ocidentais. Sua proposta é o reestabelecimento do "Califado", nome dado aos Estados islâmicos encabeçados por líderes religiosos e políticos que alegam ser sucessores do Profeta Maomé.

    O último desses impérios foi o Califado Otomano, dissolvido em 1924. Sua restauração é um sonho de saudosistas radicais desde a década de 1950.

    Apesar de suas abordagens medievais com relação às leis e ao controle social, não se pode dizer que sua organização seja retrógrada. Ao contrário das restrições do Taleban a escolas corânicas e aos conhecimentos com base nos escritos do Profeta, esse novo movimento se apoia em uma tecnologia e uma organização extremamente modernas. É isso que dá a eles seu gigantesco poder.

    É a compreensão das novas forças contemporâneas, aliada a um gigantesco pragmatismo que distinguem esta organização dos outros grupos armados que a precederam. A começar por sua fonte de renda. Ao cooperar com os líderes locais, em vez de tratá-los como súditos de territórios conquistados, o grupo busca estabelecer alianças com tribos sunitas para garantir sua legitimidade, explorar campos de petróleo, rotas de contrabando e usinas elétricas. Trabalhando juntos, eles organizaram a extração e a distribuição de recursos, parte deles vendida de volta para o governo sírio.

    Mas a sua maior façanha está na manipulação da mídia. Uma conclusão óbvia, que, surpreendentemente, a Al Qaeda não parece ter compreendido, é que o medo é arma muito mais potente do que a pregação religiosa. Os terroristas da Síria não são mais violentos ou bárbaros do que os milicianos da Bósnia, Somália ou Chechênia, mas usam a tecnologia com maestria para divulgar a sua causa.

    A violência sempre vendeu jornal. Mas em um mundo sobrecarregado de informação, uma imagem precisa ser cada vez mais chocante para chamar a atenção. Conscientes disso, os criminosos documentam suas atrocidades em formatos de fácil compartilhamento, facilmente visíveis em telefones móveis. Em uma sociedade voyeur, banal e apelativa, o sadismo se tornou espetáculo.

    Enquanto o Taleban desprezava a tecnologia, esses novos bandidos tomam posse dela. Seu aparelho de propaganda ideológica é uma operação de alta tecnologia, executada por profissionais qualificados, incluindo publicitários mercenários importados do Ocidente. Com a ajuda de mídias sociais, eles buscam apresentar uma imagem política contemporânea, em nítido contraste com as democracias ocidentais decadentes e o mau funcionamento dos regimes autoritários da região.

    Mostrando uma clara compreensão de análise de comunicação sofisticadas, eles apelam para a força das mídias sociais para espalhar profecias assustadoras, compreendendo a tendência a agir de forma irracional quando se lida com questões apavorantes como o terrorismo.

    O aparelho ideológico é rápido em circular boatos e aumentar os feitos de seu poder, o que é muito prático para recrutar voluntários, levantar contribuições e promover missões de treinamento. Entre seus "cases" de sucesso, dignos de leões de mídia em Cannes, estão a falsificação de milhões de links durante a Copa na esperança de mostrar vídeos de militantes britânicos tentando persuadir outros fiéis a se juntar à luta e um aplicativo do Twitter chamado "Dawn", promovido por celebridades do grupo para garantir a divulgação de notícias fresquinhas.

    Para muitos de seus devotos, o objetivo principal do grupo é ser para os muçulmanos sunitas o que Israel é para os judeus: um estado em sua antiga terra, capaz de protegê-los aonde estiverem. Por mais que a comparação seja primitiva e repulsiva, ela não deixa de ser uma forte mensagem para cidadãos marginalizados no vácuo político dos Estados árabes modernos depois de décadas de sanções, guerras e corrupção. A mensagem também é poderosa para jovens muçulmanos marginalizados em países desenvolvidos do ocidente, em sociedades que lhes negam oportunidades.

    Soldados rasos do grupo ganham pouco, menos do que um terço do salário de um pedreiro iraquiano. Mas isso não impede a luta de pobres iludidos que sonham experimentar o Califado nesta vida, mais tangível do que as míticas virgens no paraíso. Para muitos ocidentais, juntar-se à jihad é uma espécie de acampamento militar de verão, uma fuga do playground plástico da virtualidade e da monotonia contemporânea. A tentativa falida de um grupo de australianos em sequestrar e decapitar um indivíduo aleatório, simplesmente para registrar a sua execução na Internet, mostra a força da sociedade do videogame, em que nada parece real.

    A principal vantagem desse grupo com relação à Primavera Árabe e sua revolta de smartphones é uma gestão profissional, ao mesmo tempo capaz de explorar a interação e a participação contemporâneas, ao mesmo tempo que planeja rumos e objetivos pragmáticos de longo prazo. Na guerra moderna, alianças nunca são claras e mudam o tempo todo. Seu sucesso brota da convergência de vários fatores, entre eles a compreensão das novas forças em um ambiente multipolar, uma boa compreensão da psicologia popular e sua aplicação na realidade econômica.

    É surpreendente, mas não deveríamos estar surpresos. Na luta contra guerrilheiros, a principal arma é a informação. A melhor política, a compreensão. Nesse conflito que à primeira vista parece estar motivado pela religião, mas que na verdade camufla interesses políticos e econômicos na luta de poder para controlar a região, os motivos estão claros. Pena que poucos consigam vê-los.

    Existe saída? Sim, mas ela envolve educação, conhecimento e compreensão do ambiente complexo em que se vive, em que absolutos deram lugar a uma realidade sutil, que demanda interpretação e consenso e respeito às instituições. Pena que os guerreiros do smartphone, os bandidos das milícias e os manifestantes de camisetas de todas as cores ainda não conseguem entendê-la.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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