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    Luli Radfahrer

    Envelopamento em conteúdo

    31/03/2015 02h00

    Quem se lembra da primeira vez em que ouviu falar do copiloto da Germanwings? Do Boko Haram? Do Estado Islâmico? Da suspeita de Ebola no Brasil? Da crise na Grécia? Do Petrolão? Das manifestações? Quem é capaz de precisar o momento e a fonte em que soube, pela primeira vez, de um fato novo ou controverso?

    O máximo que se consegue saber é que a informação veio "da Internet", compartilhada pelas redes sociais, provavelmente originária de algum veículo de informação. A princípio não haveria problema com um fato não lido na Folha, Estadão, JB, Época ou Zero Hora, nem apresentado pela Globo, Bandeirantes, CBN ou ESPN. Pelo contrário, poderia indicar uma saudável multiplicidade de fontes, opiniões e pontos de vista.

    Nenhuma história, no entanto, é neutra. Nenhuma verdade é absoluta e toda informação vem de algum lugar. Se não foi testemunhada diretamente, deve ter chegado mediada por um autor ou editor. Este personagem é um filtro. Ele determina o ponto em que começará a narrativa, o que ressaltar e o que suprimir. O resultado desse processo é a linha editorial da história.

    Hoje vivemos "envelopados" em conteúdo. As informações são tantas, vindas de tantas fontes, que é praticamente impossível identificar-lhes a origem. Algumas delas, mesmo absurdas, acabam registradas no subconsciente. Quando alguém as repete, outro "já ouviu isso em algum lugar" e, sem o saber, valida a informação. Quem conta um conto, dizem, aumenta um ponto.

    Por mais que se ame ou abomine a linha editorial de um periódico, não se pode esquecer que o Jornalismo é uma instituição social. Como a Escola, o Direito e a Medicina, ele se apoia em uma relação de ética e confiança estabelecida entre as partes, muito maior do que a que se deposita em um gerente de banco, comerciante ou publicitário. Jornalismo de qualidade leva em consideração a fonte da história e busca, sempre que possível, desenvolver um distanciamento crítico, especialmente quando o assunto é controverso e pode comprometer reputações. Quem não faz isso pratica uma forma perniciosa de entretenimento travestida de notícia.

    Um dos principais papéis sociais da comunicação é o de atribuir contexto e organizar a ação coletiva. A conversa informal, nos botequins dos Facebooks e cantinas dos Linkedins, não deveria ser considerada fonte de notícia ou reflexão, mas de fofoca, boato e difamação, menos importante por seu conteúdo do que por seu efeito no reforço das relações sociais.

    Nesse contexto, "viral" é muito diferente de verdadeiro.

    Um dos primeiros aprendizados sociais é o de relativizar a informação recebida. Se um tiozinho careta, um carro de som de sindicato em greve ou um ator em programa de culinária diz algo, a informação tem importância diferente de um relato de um médico, advogado ou professor no exercício de sua função. Quando se ouve que "tal jornal é reaça", que "tal revista tem problemas editoriais" ou que " a emissora bajula o governo porque depende de patrocínio", o senso crítico está em ação.

    Ele nunca foi tão importante. Até há pouco tempo, mesmo quem não ligava para a imprensa trombava nas notícias de capa das revistas e de primeiras páginas de jornais e portais e, dessa forma, sabia o que acontecia de importante no mundo. Hoje é possível ignorá-las completamente e viver no isolamento das câmaras de eco das mídias sociais, em que só o conhecido - e aceito - é transmitido.

    A Internet ainda tem o potencial de ser um meio mais adequado para a formação democrática do que foi a mídia de massa, mas para isso precisa melhorar muito seu critério de seleção de conteúdo. O grande problema com as timelines e mecanismos de busca é que o algoritmo prioriza a popularidade, não sua precisão ou veracidade. Igualzinho a um papo de boteco.

    O peso da informação deveria ser um reflexo da reputação do autor, não da popularidade do tema nem das preferências do leitor. Categorias sociais tão diferentes quanto pais, governantes, professores, médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos e personal trainers sabem que "dar ao povo o que o povo quer" é uma prática frágil, efêmera e superficial. Ao inverter a hierarquia de valores, a relevância da instituição é comprometida. Hoje que todos tem acesso à informação, a função do especialista é atribuir critério goela abaixo, mesmo quando indesejado. Principalmente quando indesejado.

    A dominação do algoritmo é perigosa porque não afeta apenas a forma com que a notícia é interpretada, mas também interfere na forma de pensar, moldando a maneira como se vê o mundo. Quando tudo é previsível e nada incomoda o resultado é banal, vazio e mimado como filosofia de boteco.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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