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    Luli Radfahrer

    Frankenstein e o Admirável Mundo Novo

    21/04/2015 02h00

    A história de Victor Frankenstein e de sua criatura foi transformada no mito literário característico dos perigos trazidos por novas tecnologias. Sua autora, Mary Shelley, dificilmente usaria o termo, que não era muito conhecido na época. Escrito em 1816, em meio aos conflitos promovidos pelos trabalhadores que perderam seus empregos para as máquinas da Revolução Industrial, Frankenstein reflete o medo ambivalente da inovação e da resistência de uma turba enfurecida que maltrata o "monstro". Não pode ser simplificado como uma obra contrária à ciência ou ao ideal do progresso.

    Frankenstein está mais para o elogio da Ciência e crítica à ignorância das massas do que o contrário. O gigante costurado em uma oficina a partir de pedaços de cadáveres não é tão diferente das máquinas fantásticas de Júlio Verne. É curioso que tenha sido escolhido, na imaginação popular, para simbolizar os riscos da ciência futurista e da tecnologia de ponta. O apelido "frankenfood" dado aos alimentos geneticamente modificados, é típico.

    A maioria das leituras de Frankenstein faz uma associação direta, simplificada e dogmática entre tecnologia, autonomia e monstruosidade, empobrecendo o personagem e a discussão derivada dele. Victor Frankenstein está longe de ser perfeito. Retratado como um cientista louco, egoísta, alheio ao sofrimento que sua criação pode gerar, ele guarda muitos elementos em comum com os admirados empreendedores do Vale do Silício.

    Como os cientistas do Projeto Manhattan ao construir a bomba atômica, sua curiosidade e desafio intelectual é, para eles, maior e mais importante do que as eventuais questões éticas que sua criação pode gerar. Para evitar críticas, assumem o papel de técnicos, ausentando-se do debate. O médico nazista Josef Mengele fazia o mesmo em seus experimentos nos campos de concentração. Seu projeto era estético, abstrato, desumano.

    A personalidade fria de Frankenstein guarda muitas semelhanças com outro megalomaníaco da ficção, Dr. Fausto. Entediado e deprimido com os limites de sua pesquisa, apela para o demônio e faz com ele uma barganha, trocando sua alma por todo o conhecimento do mundo.

    A ambivalência humana com relação à tecnologia e o desafio aos dogmas estabelecidos por tradição e religião é um tema tradicional. Prometeu, a inspiração de tantos frankensteins, é um titã da mitologia grega que traz para a humanidade o fogo dos deuses, sofrendo com isso a danação eterna. No folclore judaico, o "Golem" é um ser antropomórfico, criado magicamente a partir de matéria inanimada. Seu criador fica dividido entre o fascínio pela criatura e o medo de que ela se rebele.

    A industrialização amplificou o medo primitivo. No filme Metrópolis, de 1926, trabalhadores industriais agem como peças de um sistema, escravos de máquinas que sustentam uma cidade "superior", em que vive uma classe ociosa. O monstro dessa vez é uma máquina, alimentada com sacrifícios humanos.

    Anos mais tarde o cientista louco é transportado para o computador, temível cérebro eletrônico. Em 1956, o filme "Planeta Proibido" antecipa o medo que "2001, Uma Odisseia No Espaço" tornará popular: que sistemas inicialmente benéficos tornem-se perigosos por falhas derivadas de sua própria complexidade.

    Na década de 1980 o Golem é transportado para os androides de Blade Runner. Perigosíssimos e amorais, esses frankensteins são revividos em "Exterminador do Futuro" e "Robocop".

    Não demora para o conflito chegar à Internet. Em 1988, o livro Neuromancer cria os termos "ciberespaço" e "matrix", tentando dar forma ao monstro invisível da Internet.

    Na virada do século matrix vira filme, consolidando o medo da tecnologia e seu poder de influência em uma realidade virtual hipnótica. Como Metrópolis, é um mundo de dois níveis, dependente de escravos para sustentar uma hegemonia validada pela ilusão tecnológica. Sua maior diferença é que a elite não é mais composta por seres humanos, mas por máquinas.

    Dois livros ingleses escritos no século 20 alertam para os perigos de hoje. O mais comentado é "1984". Escrito por George Orwell logo depois da Segunda Guerra Mundial, impressionado pelo totalitarismo soviético, ele retrata o medo de um "Grande Irmão" (Big Brother), que vigia e controla a todos, transformando a sociedade em uma prisão. Muito é dito e feito para evitar esse cenário, principalmente quando se descobre o poder e interferência de agências governamentais de todo o mundo sobre a privacidade na rede.

    A outra história é "Admirável Mundo Novo". Escrita em 1931 por Aldous Huxley, que tinha visitado a fábrica de Henry Ford nos Estados Unidos, ela buscava criticar a industrialização e padronização crescente dos processos manufaturados. O ambiente burlesco e higiênico que ela retrata pode ser mais perigoso do que qualquer ditadura.

    Em uma era de tecnologia avançada, Admirável Mundo Novo mostra que a devastação cultural terá origem mais provável no inimigo com rosto sorridente, muito mais perigoso do que de alguém cuja presença inspire medo, suspeita ou raiva. Na profecia huxleyana, o Grande Irmão não precisa ver seus súditos. Eles mesmos vigiam, registram e quantificam a si próprios. Não há necessidade de guardas, portões ou Ministérios da Verdade quando a população, cheia de pão e circo, é distraída em um ambiente de entretenimento perpétuo, que transforma cada membro da plateia em protagonista.

    Qualquer dissidência nesse ambiente é considerada histérica e logo ignorada. Aaron Swartz, Edward Snowden e Julian Assange tiveram, como o Unabomber, seus 15 minutos de fama. Logo serão ignorados em nome da próxima comodidade ou entretenimento.

    As instituições sociais não foram preparadas para reconhecer uma gaiola de vidro. É fácil identificar e agir contra atrocidades de grupos como o Boko Haram ou o Estado Islâmico, mas o que fazer quando não houver clamores a ouvir? A quem se queixar quando o discurso político é dissolvido em risos? Qual é o antídoto para uma cultura drenada por ironia e paródia?

    Os filósofos clássicos não prepararam a civilização para este cenário. Seu mundo é mais simples, objetivo e dicotômico. Suas advertências, dirigidas contra ideologias claramente formuladas. A nova ideologia, que transforma cidadãos em usuários, é imposta socialmente na forma de entretenimento. Não houve debate nem consenso para chegar a ela. Não há controle nem oposição, apenas aderência.

    A Internet é, não se pode esquecer, apenas mais um conjunto de máquinas. Ao contrário das que a precederam, ela estabeleceu uma relação de codependência tão profunda com a civilização que não pode ser desligada sem provocar um colapso no modo de vida contemporâneo.

    Mas isso não significa que se deva submeter ao sacrifício humano demandado pela ganância de seus controladores. Somente através de uma profunda consciência da estrutura e dos efeitos da interface há esperança de ganhar independência sobre o mundo ilusório que é apresentado.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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