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    Luli Radfahrer

    Ferramentas, tecnocracia e tecnopólio

    28/04/2015 02h00

    Desde a idade da pedra polida que várias culturas são definidas com base em sua relação com a tecnologia. Há cerca de 25 anos, o crítico cultural americano Neil Postman escreveu o livro "Tecnopólio: a Rendição Da Cultura à Tecnologia", em que mostrava que essa classificação de sociedades as divide em três categorias: culturas que utilizam ferramentas, tecnocracias e "tecnopólios". Segundo ele, os três tipos ainda poderiam ser encontrados no planeta, embora o primeiro estivesse em extinção.

    Até o século 17, todas as culturas eram do primeiro tipo. A principal variação entre elas era o tipo de ferramenta disponível e o uso que se dava a ela. Nessas sociedades, ferramentas eram acessórios comuns. Não importa o quanto uma roda fosse importante para os habitantes do neolítico ou uma prensa de tipos móveis fosse para a sociedade na época de Gutemberg, elas nunca chegaram a ser importantes a ponto de serem cultuadas.

    Nos raros casos em que uma delas era transformada em ícone, como na cruz cristã, o uso era simbólico, indireto. Em todas as variações dessa religião, o antigo instrumento de tortura servia para simbolizar amor, sofrimento e perdão. Não tenho conhecimento de uma seita que use crucifixos para cultuar sua eficiência como ferramenta de punição.

    Até a revolução industrial, ferramentas tinham poucas funções, claramente estabelecidas. Elas poderiam ser usadas para resolver um problema específico da vida física, como uma faca ou arado. Elas também poderiam servir para o entretenimento e desenvolvimento da sociedade, arte e cultura, como pincéis ou instrumentos musicais. Ferramentas até poderiam ser utilizadas como objeto ritualístico, mas sem interferir em seu significado.

    Um turíbulo, aquela bolinha prateada de onde sai o incenso em missas católicas é um exemplo desse terceiro tipo de ferramenta.

    Os inventores de todos esses objetos, em sua maioria anônimos, procuravam eficiência em seus resultados, mas não imaginariam sua interferência na dignidade ou integridade dos processos em que trabalhavam. A cultura dirigia a invenção e o uso.

    As ferramentas dessa época sempre estiveram integradas à cultura de sua aplicação. Guiadas por hábitos, costumes, castas e crenças, essas sociedades não imaginariam que ferramentas pudessem estabelecer diferenças. A própria ideia de sua posse era, para muitos grupos, considerada estranha.

    Com a revolução Industrial surge a ideia da tecnocracia, uma organização social em que as ferramentas e seus processos desempenham um papel central na visão de mundo. Todas as coisas precisam estar organizadas de forma que deem espaço para seu desenvolvimento e seu principal valor, a eficiência. Nessas sociedades, a ferramenta não está mais integrada à cultura. Pelo contrário, ela busca combater seus valores na tentativa de tornar-se o elemento central.

    Com a tecnocracia, valores éticos e intelectuais são separados. As pessoas passam a acreditar que conhecimento é poder, e que, portanto, não deve ser compartilhado. Seguindo o mesmo raciocínio, a pobreza, que até então tinha sido infortúnio e responsabilidade de todos, é transformada em incompetência.

    No século 19, a tecnocracia estava bem encaminhada. Uma de suas maiores invenções foi a própria ideia de invenção, de que se algo poderia ser feito, deveria ser feito. Junto com ela florescem novos valores: objetividade, eficiência, especialização, padronização e mensuração.

    Uma ideia é como uma lâmpada de rua. Para quem está sóbrio, pode servir como iluminação. Só para os bêbados que ela serve de apoio. O fascínio pela tecnologia, na forma de Tecnocracia, desmontou tradições, criou liberdades e reorganizou a sociedade. Mas ele também acelerou o mundo e transformou o tempo em um adversário que poderia - e deveria - ser derrotado.

    Mas isso não seria o fim da história. Segundo Postman, o pior viria na forma de "tecnopólio", a ditadura da tecnocracia. Ele resolveria de vez o conflito entre moral e eficiência. Essa mudança não aconteceria por decreto, como tentaram diversos regimes comunistas. Não adiantava tornar os velhos costumes ilegais, imorais ou impopulares. O ideal seria deixá-los invisíveis e, dessa forma, irrelevantes.

    O maior produto de um tecnopólio é a informação. Ela serviria para resolver os problemas do mundo, por mais que a fome e a guerra dificilmente possam ser justificados por falta dela.

    A ligação entre informação, razão e utilidade começa a perder a legitimidade em meados do século 19 com o telégrafo. Foi com ele, e não com a Internet, que surgiu a ideia de informação livre de contexto, desvinculada de propósito, dirigida a ninguém em particular, em grande volume e velocidade, desconectada de significado. Simplesmente informação.

    Com o tecnopólio, a máquina se diviniza. Seu julgamento, exato e preciso, é considerado superior ao juízo humano que, ambíguo e complexo, não deve ser confiável. A subjetividade se torna um obstáculo. A incerteza, um defeito. O que não pode ser medido não existe. Ou não tem valor. O progresso humano é substituído pelo tecnológico. O objetivo deixa de ser reduzir a ignorância, a superstição e o sofrimento, mas atender às exigências da máquina.

    O maior perigo de confiar assuntos sociais, morais ou políticos para um burocrata, seja humano ou tecnológico, é sua indiferença a qualquer conteúdo fora de sua área de especialidade. Ambientes em que a eficiência é irrelevante, como a cidadania, educação ou relacionamentos, são ignorados. Quando aparecem situações que demandam flexibilidade nas regras ou que não possam ser resolvidas por processos, o resultado costuma ser desastroso.

    Postman morreu em 2003. É uma pena. Gostaria de ouvir o que alguém como ele teria a dizer a respeito do mundo curioso em que vivemos em função dos escravos mecânicos que deveriam nos servir.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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