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    Luli Radfahrer

    O triste fim do sonho hippie

    05/05/2015 02h00

    Nos tempos da Internet movida a lenha o mundo digital parecia o espaço sideral. Ou o oeste selvagem. Ele era uma "nova fronteira", ambiente perfeito para concretizar as fantasias que o mundo real teimava em limitar. Em 1996, quando a web comercial começou a engrenar e chamar a atenção das autoridades, John Perry Barlow, antigo letrista da banda de rock Grateful Dead, escreve sua Declaração de Independência do Ciberespaço.

    Seguem alguns trechos do manifesto do Paulo Coelho deles:

    "Governos do Mundo Industrial, gigantes monótonos de carne e aço, eu venho do espaço cibernético. Em nome do futuro, peço a vocês do passado que nos deixem em paz. Vocês não são bem-vindos entre nós."

    "Não temos governos eleitos, nem é provável que tenhamos algum. Por isso eu me dirijo a vocês sem autoridade maior do que aquela com a qual a liberdade sempre fala. Eu declaro o espaço social global que estamos construindo um lugar independente das tiranias que vocês tentam nos impor. O espaço cibernético está fora de suas fronteiras."

    "Vocês não sabem nada da nossa cultura, nossa ética, ou os códigos falados que já deram a nossa sociedade mais ordem do que poderia ser obtida por qualquer das suas imposições."

    "Vocês alegam que existem problemas entre nós que vocês precisam resolver. Usam essa alegação como desculpa para invadir nossos territórios. Muitos destes problemas não existem. Onde existirem conflitos reais, onde existirem erros, iremos identificá-los e resolvê-los por nossos próprios meios."

    "Nosso mundo é diferente do seu. Declaramos nossos egos virtuais imunes à sua soberania, mesmo se continuarmos a aceitar as suas regras sobre nós."

    Curiosamente a declaração é assinada em Davos, sede do Fórum Econômico Mundial. É interessante pensar como, 19 anos mais tarde, exatamente o mesmo texto poderia ser usado contra os empreendedores "libertários" da rede, que tampouco foram eleitos e não conhecem os ambientes que invadem. Sua cultura e visão de mundo é imposta junto com as tecnologias que vieram resolver "problemas" de que ninguém sabia.

    Ao defender este ideal aparentemente admirável, os novos magnatas reproduzem algumas das características mais arcaicas da sociedade americana, especialmente as derivadas da amarga herança da escravatura. Sua visão utópica da Califórnia depende de uma cegueira voluntária para os outras características da região: racismo, pobreza e degradação ambiental.

    Ironicamente, em um passado não muito distante, os intelectuais e artistas da área eram críticos passionais dessas mesmas questões.

    O mundo digital é esquizofrênico desde o berço. Nascido de um casamento improvável entre a boemia cultural de São Francisco e as indústrias de tecnologia de ponta do Vale do Silício, há nele um pouco do espírito livre dos hippies e do empreendedorismo dos yuppies. A mistura só não implode por causa de uma profunda fé, quase "new age", no potencial emancipador das novas tecnologias da informação. Na utopia digital, afinal, todo mundo pode ser tão rico quanto descolado. Elon Musk que o diga.

    Foi o fascínio promovido pela Eletrônica e amplificado pela filosofia panfletária de Marshall McLuhan (com seu sonho de uma aldeia global cujos meios poderiam transformar as mensagens) que fez os velhos hippies abraçarem a ideologia do capitalismo selvagem daqueles que até há pouco eram seus inimigos.

    Ignorando políticas de cortes sociais, quem defendia direitos humanos foi hipnotizado pelo entusiasmo com as novas tecnologias da informação. Elas capacitariam o indivíduo e aumentariam sua liberdade pessoal. No processo, aproveitariam para diminuir o poder do Estado.

    Não se pode subestimar o poder da hipnose tecnológica. Os mesmos ativistas que durante a década de 1960 foram os pioneiros no panorama político e cultural, lançando campanhas contra o militarismo, a desigualdade, o consumismo irracional e a poluição, hoje usam alegremente seus eletrônicos de última geração, subsidiados por investimentos militares, cujas fábricas degradam o ambiente e escravizam os operários do mundo pobre.

    Os mesmos hippies que sonhavam com uma sociedade sem propriedades particulares ou carros hoje aguardam ansiosamente seus veículos autônomos e casas inteligentes. O povo comunitário que sonhou com a aldeia global não se incomodou em vê-la transformada em um mercado globalizado. Não demorará para ver quem defendia a liberdade de expressão falar em defesa da vigilância.

    Parece Revolução dos Bichos, mas a distopia é real. O pensamento californiano retira a sua popularidade da própria ambiguidade de seus preceitos. Como em Atenas, os escravos não precisam ser eliminados. Basta que fiquem escondidos.

    Ou que se percebam como voluntários, como o quase bilhão de pessoas que alimentam diariamente o Facebook com seu único real patrimônio. Ou como os artesãos digitais, que em troca de "autonomia" sobre o ritmo e local de trabalho, tem horas mais longas e prazos mais curtos do que as gerações que os precederam, sem direito a férias ou a qualquer estabilidade. Não lhes sobra alternativa a não ser buscar no trabalho a principal rota para a auto-realização. É a única devoção para qual a maioria tem algum tempo, portanto é bom que satisfaça.

    Ao pregar uma salada bizarra de anarquismo hippie com liberalismo econômico temperada com determinismo tecnológico, muitos deixam de perceber a triste ironia em que o sonho digital se tornou. Em vez de buscar a emancipação da humanidade, esta forma de determinismo tecnológico só tende a aumentar a infelicidade e a segregação.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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