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    Luli Radfahrer

    Ribossomos digitais

    26/05/2015 02h00

    A fabricação digital está cada vez mais próxima da realidade. Munidos de impressoras 3D, scanners e algoritmos cada vez mais detalhados e precisos, equipamentos industriais buscam romper as barreiras entre os mundos digital e físico, em um processo de criação, desmanche e reciclagem de materiais.

    A ideia tem ares de alquimia, e o objetivo maior de seus principais desenvolvedores não é tão diferente. Em um mundo de recursos cada vez mais limitados e poluição ambiental crescente, ninguém mais pode dar-se ao luxo de criar novos materiais a partir de matérias-primas virgens e delegar a seus consumidores a tarefa de cuidar deles até seu eventual fim, arcando inclusive com despesas de remoção e descarte ou, quando possível, reciclagem em um processo impreciso, pouco eficiente e raramente completo.

    Hoje é impraticável acompanhar a cadeia e ciclo de vida de um produto industrial depois que ele deixou a loja. Acompanhar ou controlar o andamento de sua vida útil e manutenção é praticamente impossível sem gerar grande mal-estar entre seus consumidores. Alguns tentam apelar para a segunda melhor opção: montá-los com uma estrutura de fácil desmanche e recolhê-los de seus antigos usuários no final de sua vida útil.

    A ideia é simpática, mas não resolve o problema. Fomos condicionados a buscar aparelhos cada vez mais leves, finos, potentes e baratos quando possível. A sustentabilidade raramente faz parte da conversa. Quando o faz, está mais ligada ao processo de fabricação do que ao de reciclagem. O resultado é a gigantesca quantidade de produtos industrializados em aterros sanitários, uma vez que seu processo de fabricação, como o de um automóvel, funde elementos em altas temperaturas e processos químicos complexos, tornando a sua decomposição praticamente impossível.

    Em busca de inspiração, a Indústria recorre à natureza. Em uma floresta que não há lixo. Quando um organismo morre, não existe lugar para descartá-lo. Suas partes são rapidamente decompostas e reutilizadas em novos materiais. Tudo se transforma, criando um sistema autossuficiente, quase fechado, com grande eficiência energética e praticamente nenhum desperdício.

    Da mesma forma, novos protótipos modulares imaginam produtos cujos componentes são de certa forma semelhantes a blocos de Lego. Quando conectados, não é preciso régua; a geometria vem das partes. Graças a essa estrutura, qualquer unidade industrial poderia construir objetos enormes, desde que munida de um conjunto de instruções. Como uma criança capaz de criar estruturas a partir de blocos de plástico, com grande complexidade e detalhe, mesmo sem ter qualquer habilidade manual específica, essas novas fábricas poderão ser genéricas e versáteis, capazes de criar e desmontar o que for necessário, conforme a disponibilidade de recursos e demanda de produtos.

    Outra vantagem desse processo de fabricação estaria, paradoxalmente, em suas restrições de montagem. Por mais versátil que seja uma estrutura feita de Lego, há limites para a quantidade permitida de variações. Isso leva uma estrutura feita com esses blocos plásticos a ser mais precisa e uniforme do que uma construção feita com blocos de madeira. As restrições de montagem permitem a identificação e correção de erros durante o processo, interrompendo-o caso necessário.

    No mundo microscópico das organelas celulares, essa estrutura já existe na forma de ribossomos, pequenas unidades fabris que combinam os cerca de vinte aminoácidos disponíveis em proteínas de grande complexidade e ação específica, em estruturas tão diferentes quanto músculos, neurônios e sensores de luz na retina. Da mesma forma, os novos processos buscam criar estruturas que, baseadas em nanotecnologia, inteligência artificial e impressão 3D, sejam capazes de criar, reciclar e recriar as nova tecnologias modernas a partir de praticamente qualquer material original, desde que seja capaz de produzir os componentes microscópicos necessários.

    O processo parece ficção científica, mas tem muitos pontos em comum com a indústria que hoje recicla plástico, partindo de polímeros complexos, organizados em estruturas determinadas para criar, a partir deles, as matérias-primas posteriormente usadas por outras indústrias, de forma tão precisa e transparente que se um dia uma sandália velha for reciclada na forma de uma escova de dentes, ninguém será capaz de identificar sua verdadeira origem. Nem terá porque se preocupar.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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