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    Luli Radfahrer

    Não se pensará como antes

    02/06/2015 02h00

    A inclusão digital precisa ser encarada como alfabetização, não como técnica. Ela é uma forma híbrida de comunicação que, como o Português do Brasil ou o Inglês dos Estados Unidos, começou como dialeto e se misturou progressivamente à língua que lhe deu origem, criando um ambiente novo e dinâmico, muitas vezes incompreensível para quem lhe é estrangeiro. Por enquanto sua interpretação é simples, mas no ritmo em que evolui, logo se tornará intraduzível.

    Os jovens de hoje são a primeira geração a crescer com a nova tecnologia. Ao passar boa parte de suas vidas rodeados por computadores, videogames, smartphones, câmaras e todos os outros brinquedos e ferramentas eletrônicas, seus cérebros vão se condicionando à multiplicidade de estímulos e demandas dessa nova era.

    Da mesma forma que uma bengala se transforma na extensão do corpo de uma pessoa cega, ajudando-a sentir o ambiente à sua volta e, através dela, a se locomover em um ambiente mesmo que não seja capaz de vê-lo, cada nova tecnologia de registro e produção de conteúdo molda a maneira de pensar, bem como aquilo que é pensado.

    A palavra impressa ajudou a criar linhas de raciocínio e longas argumentações, que seriam facilmente perdidas ou manipuladas por alguém que tivesse uma boa oratória. Ao permitir que o conhecimento pudesse ser consultado, revisto e comparado, ela ajudou a expandi-lo.

    Jornais encolheram o mundo ao mesmo tempo que o tornaram imenso. Ao mesmo tempo que tudo que tinha ocorrido de importante no planeta podia caber em algumas páginas impressas, essas mesmas páginas tinham a capacidade de mostrar lugares distantes e formas inéditas de pensar.

    A partir de meados do século 19, o mundo foi se tornando progressivamente menor e mais próximo, ao mesmo tempo que mais diverso e múltiplo. Telégrafo, telefone, Internet, celulares e smartphones trazem tantas novidades culturais quanto inovações técnicas. E a cada inovação, velhas indústrias e formas de pensar caem por terra, levando com elas profissões que pareciam inabaláveis.

    Sempre que surge uma nova revolução surgem com ela novos profetas culturais a debater se a sociedade está diante de um apocalipse ou de uma utopia. Boa parte dos argumentos é infrutífera, por estar concentrada no efêmero. Em sua miopia de contexto, ela se preocupa demais com os problemas atuais, sendo muitas vezes incapaz de imaginar que logo serão superados em nome de uma mudança mais estável e duradoura. Platão dizia que os livros isolavam as pessoas e que, sentados em seus cantos a ler, ninguém mais conversaria. Não era capaz de pensar que esse hábito logo seria complementado por outras formas de interação social, pois de que vale ler algo fascinante se não houver ninguém com quem dividir a experiência?

    Estudos mostram que formandos em universidades dos EUA hoje - e, portanto, jovens com estilos de vida equivalente por todo o mundo - terão passado menos de 5.000 horas de suas vidas lendo, contra mais de 10.000 horas a jogar videogames e o dobro disso a assistir TV. Boa parte dessa experiência será consumida de maneira simultânea, muitas vezes ao administrar três ou mais canais simultaneamente.

    Perde-se em concentração, ganha-se em abrangência. A calculadora digital fez com que muitas pessoas capazes de fazer diversas operações no papel perdessem essa habilidade, reconfigurando seus neurônios para fazer algo mais útil. Hoje o mesmo acontece com a memorização de endereços, aniversários, números de telefone e rotas através da cidade. Se o computador é capaz de fazer essa atividade, alegar que o ser humano também deveria ser capaz de fazê-la para não se tornar dependente é tão absurdo quanto argumentar que deveríamos ser capazes de furar paredes com as próprias mãos para não depender de martelos.

    A neurociência contemporânea vem comprovando a plasticidade do cérebro. Estímulos constantes de vários tipos realmente mudam a estrutura do cérebro e afetam a maneira como se pensam. A velha ideia de que o ser humano tem um número fixo de neurônios que morrem aos poucos foi substituída pela constatação de que o reabastecimento de células cerebrais é constante, tornando o cérebro um órgão constantemente reorganizado, adaptado a cada novo ambiente.

    A mudança das novas gerações não é simplesmente incremental com relação ao passado. Ela não é só uma mudança de gírias, roupas, adornos ou estilos, como veio acontecendo com as gerações anteriores. Mais do que isso, ela representa uma completa ruptura na forma com que se pensam e processam informações.

    As diferenças vão muito mais longe e mais profundo do que a maioria dos pais, chefes e educadores suspeitam ou percebem. É muito provável que os cérebros dos novos sejam fisicamente diferentes, como resultado de como eles cresceram. Mas isso ainda não é comprovado. O que é certo dizer é que, mesmo que a anatomia tenha permanecido a mesma, nunca mais se pensará como antes.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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