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    Luli Radfahrer

    Proibido para maiores

    09/06/2015 02h36

    Muito se reclama que os principais serviços de mídia social criam ambientes "protegidos", típicos de shopping centers, em que há pouca ou nenhuma tolerância para o diferente, em que todos são conhecidos ou identificáveis, em que ofensas não são permitidas e, principalmente, de cujos termos de uso são obscuros. Mas essa infantilização já faz algum tempo que não se restringe à Internet.

    Em áreas tão distintas quanto a política e o cinema, departamentos de marketing parecem ter conseguido esvaziar todo e qualquer discurso autoral, educativo ou social em nome de um blablablá insosso, esvaziado de significado, politicamente correto disfarçado de "opinião pública".

    De jornais a websites, de comidas a vestimentas, pouco se vê além de uma uniformidade branda, bege e insossa, que busca se fundir ao ambiente ou higienizá-lo. Pesquisas genéricas buscam em um público igualmente genérico os desejos mais uniformes, de modo que não desagradem, insultem ou ofendam nenhum de seus frágeis potenciais consumidores. O resultado são embalagens, prefeitos, jornais, hotéis, empresas, telefones, profissões, cremes, guichês, comprimidos, palestras, deputados, aeroportos, lojas, CEOs, aplicativos, programas de TV e podcasts cada vez mais parecidos entre si.

    O cinema é um triste exemplo. A mesma indústria que fez "Dr. Fantástico" (1964), "O Poderoso Chefão" (1972), "Um Estranho no Ninho" (1975), "Taxi Driver" (1976), "Annie Hall" (1977), "O Franco Atirador" (1978), "Kramer vs. Kramer" (1979), "Hair" (1979) e "Touro Indomável" (1980) deixa de fazer adaptações de peças da Broadway e romances literários contemporâneos –isso para filmar histórias em quadrinhos, videogames, passeios em parques temáticos e brinquedos.

    Desde o sucesso de "Star Wars" (1977), muitos diretores de cinema se transformaram em mercenários daquela que um dia foi a sétima arte, dedicando parte considerável de seu portfólio para produtos comerciais. Como o Facebook, Hollywood "mima" seus espectadores ao entregar a eles exatamente o que querem.

    Dos cem filmes que aparecem na lista de maior bilheteria em todo o mundo, noventa foram lançados neste século. Destes, 76 (85%) são fantasias; seis são ficção científica e outros seis são aventuras para meninos (as séries "007" e "Velozes & Furiosos"). Além desses há um musical inocente ("Mamma Mia!") e um filme de base religiosa ("A Paixão do Cristo", de Mel Gibson). E só. O papel das mulheres nessas novas histórias é desprezível. Depois da explosão de liberdade e independência em "A Primeira Noite de Um Homem" (1967) e "Barbarella" (1968), elas voltam a ser sex symbols de importância secundária.

    Os enredos são tão simples que poderiam caber em um parágrafo, com histórias em que o plano principal está na experiência da criança ou adolescente, no estágio em que foi separado da estabilidade de sua unidade familiar habitual. Quase independente, ele alterna figuras paternas, mesmo que eticamente discutíveis, desde que aparentem segurança e serenidade em um mundo confuso e mutante.

    A sociedade em que vivem faz com que a Síria pareça a Noruega, portanto não adianta buscar na lei uma solução. Cada um responde por sua própria independência e proteção, através de vigilantes tribais, autonomeados que operam fora da força policial e não respondem a um governo eleito.

    Nesse mundo, o "super-herói" é uma suavização romântica de um psicopata ou criminoso (exploradores, mercenários, cavaleiros, piratas, cowboys) e outras figuras mitológicas, como dragões, ogros e duendes. Não se discutem relacionamentos e, sempre que possível, a atração sexual em qualquer nível acima do primitivo é ocultada.

    Trabalho, leis, pesquisa e paciência são coisas chatas. Tudo é um grande jogo, e quem não arrisca não petisca. A continuidade, manutenção de ordem ou mesmo a plausibilidade psicológica são acessórias. Na falta de referências culturais para compartilhar com a plateia, muitos filmes fazem referência a outros filmes de qualidade similar, na tentativa de criar em seus públicos um momento "aha". "Transformers", um clássico desta nova época, deixa claro: bom é bom, mau é mau e carros viram monstros.

    Em videogames, uma indústria cujos temas populares quase nunca chegaram a amadurecer, os títulos mais vendidos dependem quase exclusivamente dos gêneros desenvolvidos para meninos: capa-e-espada, feitiçaria, artes marciais, viagens espaciais, ação, corrida, matança, guerra e super-heróis. Raramente surge um game com a qualidade narrativa de um Fellini ou um Kieslowski. Certamente não é a tecnologia que os limita.

    A relação entre os produtores de cinema e videogames e seus públicos descreve um círculo vicioso: há quem diga que a sociedade é infantilizada em benefício de um consumismo que valoriza gastos e vê o trabalho como um peso irrelevante; por outro lado pode-se dizer que a indústria, munida de pesquisas de audiência, evita riscos e protege investimentos de porte ao entregar ao público o que sabe que agradará.

    O resultado é triste, e pode ser constatado cada vez que se vê gente em um museu mais preocupada com a "selfie" do que com a obra que deveria provocar alguma reflexão.

    A maioria das histórias vem sendo, como as redes sociais, transformada em um espaço de regressão, em que imaturidades e petulâncias inaceitáveis no mundo real se tornam a regra, transformando um ambiente que poderia ser questionador, diverso e abrangente em um salão confortável, seguro e bem comportado, conveniente para se esquivar das complexidades da vida adulta.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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