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    Luli Radfahrer

    Divulgar para preservar

    07/07/2015 02h00

    Nos tempos da fotografia baseada em filme poucas coisas davam tanto trabalho quanto o negativo. Considerado o único "original" fotográfico, ele deveria ser guardado com todo o cuidado. Se tivesse algum valor histórico ou artístico, precisaria ficar em um armário escuro e climatizado para que não se deteriorasse. Em outras palavras, a melhor forma de preservá-lo era escondê-lo.

    A película fotográfica, hoje tão cultuada por hipsters e aspirantes em geral, era um pesadelo tecnológico. Frágil e limitada, ela era guardada em um cilindro de metal que sofria com calor, umidade, pó e solavancos. Se fosse comprada em rolos e rebobinada para cartuchos, poderia ser danificada, empoeirada ou riscada no processo, ou inutilizada antes mesmo de entrar na câmara. Boa parte dos efeitos "criativos" de aplicativos como o Instagram vem de câmaras ruins, que tinham pequenos vazamentos de luz ou filmes com defeito, cuja reprodução deixava a desejar. Se hoje parecem lindos, seus usuários da época não tinham a mesma opinião.

    Como praticamente não haviam filmes capazes de armazenar mais de 40 fotos, o processo de alimentação da câmara era outro pesadelo. Muitos amadores e iniciantes inutilizavam trechos generosos de seus filmes na tentativa de encaixá-los em suas bobinas. Várias vezes a câmara era fechada e várias fotos eram tiradas só para se perceber que o filme não tinha sido bem encaixado e nenhuma fotografia tirada até então tinha valido. Profissionais de fotojornalismo tinham que trocar seus filmes nas condições mais impróprias (em um campo de futebol sob chuva ou no meio da multidão em uma passeata, por exemplo). Muitas fotos foram perdidas ou nem chegaram a ser tiradas para "economizar" o registro e poupar oportunidades que jamais se repetiriam.

    A revelação era um processo tão delicado que beirava a alquimia. Diz a história que George Eastman, o fundador da Kodak, criou sua empresa porque não aceitava que o processo - que em sua época era ainda pior - deveria ser tão complexo. Buscando popularizar a fotografia, ele criou um sistema em que os usuários compravam a câmara e a devolvia inteira, recebendo em troca suas fotos e outra câmara virgem. "Você aperta o botão e nós fazemos o resto", dizia seu slogan de 1888.

    Ao longo do século 20, o processo foi simplificado nas etapas em que isso era possível, abandonando negativos de vidro e papel e tornando o processo de revelação e ampliação o mais simples possível. Mesmo assim, muitas imagens históricas foram perdidas por desastres técnicos.

    Uma das mais famosas delas, a da chegada dos soldados aliados na Normandia durante a Segunda Guerra Mundial, quase foi perdida. A famosa revista Life enviou o intrépido Robert Capa, que se considerava mais jornalista do que fotógrafo e detestava guerras, para acompanhar o desembarque dos soldados. Debaixo de uma troca de tiros violenta, não era possível trocar filmes. Mesmo assim Capa conseguiu tirar 106 fotos nas duas primeiras horas da invasão.
    Ciente da importância das imagens para mostrar a realidade da guerra, ele voltou imediatamente para o escritório da revista em Londres. Quando chegou lá, era quase a hora do fechamento da edição, cujo tema era a invasão. Na correria para garantir a publicação das fotos, um assistente fechou a porta do armário em que os filmes secavam. Sem ventilação, a emulsão se derreteu. Sobraram só 11 fotos, que ficaram conhecidas como alguns dos mais importantes registros daquela guerra.

    Se a relação com o negativo era difícil para o profissional, para o amador ela era um verdadeiro pesadelo. Mesmo sem qualquer conhecimento do processo fotográfico, quem mandava suas fotos para revelar em pequenas lojas recebia suas fotos e um envelope com os negativos, que acabavam abandonados em algum canto, deteriorados por sol, poeira ou mofo.

    Com o advento do digital, o negativo virou fetiche. Salvo os poucos artistas plásticos que o utilizam como suporte, todo o resto comemorou sua eliminação. Em menos de uma década, câmaras passaram a ser capazes de armazenar milhares de fotos de qualidade profissional em pequenos cartuchos, que poderiam ser trocados facilmente à luz do dia. Copiadas para discos rígidos, as novas fotos não riscam nem deterioram, podem ser facilmente manipuladas e copiadas indefinidamente, sem prejuízo do original. Ainda é possível perder ou danificar um disco rígido, mas cópias de segurança podem ser feitas sem esforço. O processo de catalogação de um acervo hoje pode ser feito pelo próprio fotógrafo, com a ajuda de alguns aplicativos especializados.

    A popularidade da fotografia digital a tornou tão corriqueira e banal quanto um bilhete. No mundo contemporâneo, espera-se algo de um desenho e nada de uma fotografia. Com a popularidade das redes sociais, não basta fotografar: é preciso compartilhar. Datas e locais, que já são registrados automaticamente nos metadados de cada foto digital, são acompanhados de comentários e marcações, que permitem seu fácil acesso através de qualquer mecanismo de busca.

    Hoje a melhor forma de preservação é a divulgação. O que não é compartilhado acaba por ter o mesmo destino de um velho negativo, abandonado no fundo de um disco rígido, ocultado por nomes como IMG_009786.DNG, até que seja perdido, inutilizado ou gravado por cima.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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