• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 15:30:40 -03
    Luli Radfahrer

    Museus ainda fazem sentido?

    14/07/2015 02h00

    Há quem diga que existam museus demais. Há quem defenda que não existam em quantidade suficiente. Uns acreditam que eles são o reservatório da arte, outros o seu mausoléu, em que quadros estariam dispostos como lápides.

    Museus gigantescos como o Britânico, o Metropolitan e o Louvre (este, maior do que o Vaticano) muitas vezes sucumbem à própria grandeza. Sua coleção exposta, desconsiderada a reserva técnica, é tão enorme que raramente consegue ser apreciada adequadamente. Como um smorgasbord de pratos artísticos, a quantidade se sobrepõe à qualidade, tirando de seus visitantes qualquer experiência estética de valor e trocando-a por uma maratona de nomes colecionáveis. Como apreciar adequadamente um Van Eyck quando se sabe que há dezenas de Rembrandts e Bruegels à espera?

    Pontos de peregrinação obrigatória para qualquer viajante, museus são os verdadeiros cartões postais de uma grande cidade. Mesmo em lugares cujo museu não faz parte do circuito mundial, como Bruxelas, Camberra ou Toronto, qualquer guia de respeito reserva uma porção considerável de suas páginas a eles. Pode-se muito bem ir a Roma e não ver o papa ou ir a Londres e não ver a Rainha, mas ai do ignorante que vá a Nova York e não veja o Met ou o MoMA.

    Mas apesar de populares entre os visitantes, boa parte dos museus ainda peca no seu relacionamento com a população local. A Sala São Paulo e o Museu da Língua Portuguesa, por exemplo, se comportam como se a cracolândia estivesse em outro planeta. Do outro lado da rua, a Pinacoteca vira as costas para o Bom Retiro. Alheia ao trânsito da 23 de maio, uma das maiores coleções de arte contemporânea da América Latina recebe um infinitésimo do público que frequentava o DETRAN que ali funcionava. Até mesmo o MASP, um dos museus mais famosos do Brasil, interage mais com a Avenida Paulista pelo espaço que deixa de ocupar (seu vão, de tantas feirinhas e manifestações) do que por suas exibições.

    Nas redes sociais, as novas praças públicas, até a burocracia do Estado tem uma presença mais forte do que os museus, com todo o seu acervo. Será que nesses tempos de virtualização e reprodução indeterminada, em que pouco é colecionado (uma vez que praticamente tudo já está digitalizado e pode ser baixado direto da fonte) e que a própria questão do que é "original" perde o sentido, museus e galerias ainda são relevantes? Ou teriam se tornado meros resquícios institucionais de uma era passada?

    A culpa, se arrisco um palpite, não é do público nem de uma instituição em especial. Ela está mais para o fruto de um sistema que perpetua a relação hermética entre "artistas" e curadores arrogantes, transformando instituições de fim educativo em coleções exclusivas, espaços intimidantes, acessíveis a um público menor do que lojas chiques de ruas idem. Espera-se de seu público uma etiqueta que não foi ensinada para uma exposição que não é explicada. O resultado acaba por ser, como em diversos concertos de música clássica e obras operísticas, mais para uma representação de papeis do que para uma real experiência estética.

    A exceção está nos museus de ciência, que parecem ter encontrado uma relação muito mais saudável com seus públicos. Voltados principalmente para a educação de crianças, sua linguagem é clara e sem pré-requisitos. A manipulação de seus equipamentos é direta e costuma ser estimulada. O resultado é um ambiente dinâmico e colorido, com a vibração cultural que deveria acompanhar qualquer descoberta. Parques ecológicos como o Projeto Tamar seguem a mesma filosofia. O resultado, barulhento e caótico, não poderia ser mais criativo.

    Os museus precisam mudar. A começar por eliminar suas restrições elitistas devidas a localização, preço, horário de acesso ou pré-requisitos de formação. Também devem abrir seus espaços para um público maior, levar as exposições para onde o povo está, não esperar que ele visite suas instalações e websites. Das ruas ao Facebook, dos bailes funk de periferia ao YouTube, o museu precisa ser parte do cotidiano. A seleção dos temas e peças precisa ser mais ampla, aberta a contribuições de todos. Graffiti é arte, da mesma forma que tecnobrega e Funk são música. Grafiteiros comoção Basquiat e Keith Haring eram vistos pela população como vândalos, até que alguém explicasse o seu valor. Uma vez reconhecido, esse valor permite a criação de arte de verdade, não Romeros Brittos impressos em pratos e distribuídos com a última edição de caras.

    O museu que mereça o nome que tem não é só uma coleção, mas um repositório de conhecimento acumulado, cultivado e classificado por gerações de profissionais com dedicação invejável. É uma instituição dedicada à exploração, preservação e divulgação da cultura e das artes. Não é (ou pelo menos não deveria ser, por mais que muitos insistam em ter lojinhas na saída de suas exposições) voltado para o marketing ou sucesso comercial. Seu interesse é grandioso e altruísta, desapegado como uma escola.

    Fontes confiáveis de referência e informação em tempos confusos, museus precisam ser diferentes do seu entorno. Não se vai a um deles por obrigação ou em busca de certificação (se bem que a quantidade de pessoas a tirar selfies na frente de obras de arte me faz duvidar desse último argumento). Os valores de seus frequentadores são diferentes dos de quem vai um shopping ou bar. Há uma predisposição para o diferente, para o inusitado, para se buscar novas formas de se ver o mundo. O que, por si só, já é uma grande conquista, nesses tempos em que o mundo é apresentado e classificado pelo Google e seus colegas.

    Ao promover cruzamentos artísticos entre arte, design, arquitetura, tecnologia, ciência, antropologia, história e suas representações no mundo antigo, no caos contemporâneo e no rico mundo digital das redes sociais, museus existem para provocar uma profunda reflexão artística, filosófica e política em seus públicos, educando-os para um debate melhor. Não é por acaso que qualquer ditadura persegue seus intelectuais e artistas. É neles que está o verdadeiro perigo.

    O museu, enfim, é tão essencial quanto um banco ou hospital. Só um povo primitivo ou em estado de emergência, como o do Taleban ou da organização terrorista autointitulada "estado" Islâmico que não são capazes de reconhecer sua importância. E levam sua vida bovina a trabalhar, consumir, se entupir de entretenimento vazio e buscar que uma seita ou religião qualquer diga a eles o que não tiveram a capacidade de encontrar na maravilhosa obra da humanidade.

    Como diz sabiamente o brasão da USP, "scientia vinces", por mais que muitas vezes a ignorância lidere as invasões bárbaras.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024