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    Luli Radfahrer

    Mais chatos do que radicais

    28/07/2015 02h02

    Eles sempre existiram. Nós é que nunca demos ouvidos a eles.

    O taxista que defendia o Minhocão, o tiozinho que não podia ver mulher sem comentar, o mórmon que tocava a campainha de casa, o torcedor de segunda de manhã e o guerrilheiro de boteco não são invenções das redes sociais. Como tampouco o são aquele tio reaça, primo playboy, vizinho crente, chefe mala e colega new age. Na mídia, o apresentador de TV que pede sangue é tão velho quanto o programa de rádio que mostra sangue, e provavelmente descendente do editor do jornal que, torcido, vertia sangue. Como eles, o entrevistador que fala mais do que o entrevistado, o apresentador camelô e o comentarista suado, de olhos arregalados e polêmicas vazias estão mais para regra do que para exceção.

    Desde que a TV diurna provou com todos os minutos que era possível fazer entretenimento de péssima qualidade em alta definição de cor e imagem, todos pareceram se contentar com o desperdício de oportunidades educativas. Das 9 às 5, a TV tornou-se, via de regra, coisa de desocupado. No fim de semana, de leitor de Caras e Contigo. Não se leva a sério quem leva Luciano Huck a sério, da mesma forma que não se considera a opinião de quem acompanha Malhação ou tem qualquer peça estampada pelo Romero Britto. Todos sabem que a cura do Câncer não será anunciada nas páginas de Ti Ti Ti nem debutará no programa da Fátima Bernardes. E não há, a princípio, problema nisso.

    Ninguém racional acredita que o time do vizinho de baixo, o namorado da vizinha de cima ou a religião do vizinho do lado sejam ameaças reais ao mundo como o conheçamos. Contanto que sua liberdade de expressão não interfira na nossa liberdade de sossego, está tudo bem. Se o cunhado gasta uma fortuna em lápis de cor e jardins secretos, problema dele. Desde que não o force a curtir suas aberrações.

    O viés de interpretação sempre foi social. A princípio, todos tinham vozes de nível equivalente, salvo pequenas variações de cargo, idade ou conhecimento. Novas mídias desequilibram essa dinâmica, à medida que amplificavam certos discursos para além da audiência que mereciam. Até o ponto em que o tom e o volume do discurso sejam relativizados e equalizados, os oportunistas ganham fama e prestígio simplesmente por ocuparem o espaço antes de serem devidamente enxotados por material de qualidade.

    A mídia da vez é o Facebook. Diferente das tecnologias de comunicação social que o precederam, ele é visto por todos, o tempo todo. Como o público ignorante da TV aberta em horário de trabalho, muitos usuários da grande rede ainda não aprenderam a relativizar o que acontece por ali. Acreditar que, graças às manifestações de poltrona dos ciberativistas, o país esteja a caminho de uma polarização ou radicalização perigosa é tão ingênuo e tolo quanto interpretar as notícias pelo viés do Datena.

    No entanto é exatamente isso que parece acontecer. Mais grave do que a virulência e o baixo nível dos comentários feitos por pessoas normalmente bem educadas é a surpresa de suas vítimas, que, chocadas, não conseguem relativizar a crítica da forma como o fariam se ela viesse de uma mesa redonda de comentaristas de futebol, de um apresentador de jornalismo catástrofe ou de aspirantes a qualquer coisa em programas de auditório.

    A democratização da rede trouxe com ela a oportunidade de ampliar a participação do leitor, levando o debate para muito além do tradicional discurso editorial. Mas ao mesmo tempo que dá voz a quem tem o que dizer, ela também abre espaço àqueles que, sem treino ou restrições, pregam suas convicções diretamente do altar ou palanque de uma webcam, validando-as via Skype com quem pense da mesma forma.

    A polarização é tão real quanto irrisória. Ela está mais para o reflexo de paixões e opiniões impulsivas do que de para qualquer atitude calculada. Como uma torcida de UFC, ela é infantil, em seu pior sentido. Pode ser perdoada como uma espécie de catarse de uma turba enfurecida em comportamento de rebanho, tão racional quanto a plateia de um showmício.

    O problema é maior do que um simples bate-boca. Hoje que a notícia é consumida em ambientes compartilhados, em que comentários de todo tipo são expressos antes e durante a leitura do texto, a interpretação não é mais individual nem influenciada pelo autor, mas coletiva. É preciso levá-la em conta. Mas até que se chegue a alguma espécie de maturidade e a qualidade do debate melhore, não se deve levá-la tão a sério.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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