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    Luli Radfahrer

    Inovação safada

    04/08/2015 02h00

    Um assunto bem sabido, embora pouco debatido, é a relação promíscua entre pornografia e tecnologia. De VHS a DVD, de Google Glass a Oculus Rift, produtos de "entretenimento adulto" parecem estar sempre entre os primeiros a chamar a atenção em uma nova tecnologia. Isso quando a demanda por eles não é o verdadeiro fator de impulsão para o seu desenvolvimento.

    É uma relação de longa data. Pouco depois do surgimento da prensa de tipos móveis, textos laicos e de natureza erótica logo ganharam as gráficas. Estima-se que o primeiro best-seller da área seja de 1527. Na década de 1840, a venda clandestina de fotografias pornográficas foi essencial para que muitos fotógrafos pudessem custear um hobby tão caro. Imagens de nus também incentivaram a invenção da microfotografia e do microfilme, para registrar e armazenar grandes volumes de imagens. Em 1895 acontece a primeira exibição pública de um filme. Seu correspondente pornográfico surge dois anos depois.

    A demanda de soldados por fotografias eróticas nas duas guerras do século 20 estimulou o surgimento de revistas e livros de bolso de conteúdo sexual, levando à popularização do formato. Câmaras instantâneas surgiram da demanda de certos consumidores por um filme que não precisasse de revelação por terceiros, poupando constrangimentos. Uma das primeiras polaroides tinha o sugestivo nome de "Swinger". Seu fabricante dizia que que era devido ao fato de ter uma alça, por mais que os comerciais de TV deixassem bem clara sua intenção.

    Desde o surgimento do videocassete que Hollywood temia a pirataria. Os fabricantes de equipamentos só não foram processados porque novamente a besta de duas costas percebeu o tamanho do mercado e se apropriou da oportunidade. A propósito, a escolha do formato VHS sobre o reconhecidamente melhor Betamax deve-se, entre vários motivos, ao baixo preço dos equipamentos de captação. Graças a ele muitos gravaram aniversários, festas, casamentos e uma sacanagenzinha esporádica. A compra de fitas e câmaras por um grande número de amadores ajudou a viabilizar o negócio e torná-lo uma indústria de porte, não o contrário.

    O DVD matou o VHS por causa de um serviço que os fãs de Poderoso Chefão ou Casablanca raramente usam: a capacidade de cortar as enrolações e pular direto para a cena preferida, repetindo-a quantas vezes fosse necessário. Sistemas de TV a cabo e cobrança pay-per-view só ganharam espaço nas residências respeitáveis depois que surgiram serviços "premium" em hotéis, com a veiculação de certos tipos de filme com clientela fiel garantida.

    Daí surgiu a internet, com seus gigantescos repositórios e sistemas de busca, garantindo um smorgasbord de preferências variadas. Com ela, a demanda por serviços profissionais de verificação de cartões de crédito, encriptação, banda larga e plataformas dedicadas a produzir, compartilhar e vender a indústria do sexo em todas as suas variações de cauda longa. Ainda em 1994, uma empresa holandesa de vídeos eróticos desenvolveu o primeiro sistema viável de streaming de vídeo, abrindo a fronteira para que NetFlixes e YouTubes, uma década mais tarde, se tornassem parte significativa do conteúdo da rede. Até mesmo o videofone dos Jetsons, tão comum no Skype e em videoconferências, surgiu em uma de suas primeiras formas comerciais através de conversas ao vivo entre artistas do corpo e seu público.

    Barata, rápida e descartável, a indústria de conteúdo sexual é extremamente versátil, mas precisa se reinventar o tempo todo. Ela forma uma parceria coesa com a tecnologia porque uma tende a satisfazer as necessidades da outra. Se por um lado a interatividade, privacidade e conveniência são essenciais para a pornografia, sua produção e consumo contínuos viabilizam boa parte dos novos produtos tecnológicos. Seja você contra ou a favor do gênero (estatisticamente você deve estar a favor), é inegável sua influência. Por mais que seja difícil medir o tráfego desse tipo de conteúdo, estima-se que o acumulado de todos os websites eróticos chegue a quase meio milhão de usuários por mês, mais do que a soma de Netflix, Amazon e Twitter. Cerca de 30% da banda da internet global é gasta em pornografia, o que corresponde a aproximadamente 10% dos websites, 25% das buscas e 35% dos downloads.

    Como todo o resto da rede, pornografia também aos poucos deixa de ser coisa de rapazes. Dados coletados pelo Pornhub, o maior repositório de vídeos da internet, revelam que o Brasil é, junto com as Filipinas, o país com o maior número de visitantes do sexo feminino, cerca de 35% do total. A cada visita ao site, elas permanecem cerca de 10 minutos, um minuto a mais do que eles.

    O Pornhub, a propósito, vem chamado a atenção recentemente pela criação de novos produtos. Entre eles estão uma pulseira que carrega baterias através do movimento repetitivo do braço, nádegas eletrônicas que vibram e uma campanha para fundear o primeiro vídeo de sexo explícito no espaço.

    Com tanta popularidade e inovação tecnológica, é bem possível que a indústria pornográfica mude a experiência sexual do futuro. Tecnologias hápticas, Realidade Virtual e Internet das Coisas permitirão que pessoas tenham condições cada vez mais realistas de estabelecer relações sexuais à distância, bem como expandir de forma considerável seus centros de prazer.

    Da mesma forma, novos gêneros de ficção tendem a expandir as relações para muito além do careta mundo cis e hétero, através de narrativas e sensações híbridas e transexuais, versões físicas que podem superar o mais louco Anime ou Hentai. Slash, um subgênero de fanfic, ficção criada por fãs de uma determinada história, realiza fantasias de relacionamento sexual entre parceiros de jornada heroica, criando pares como Harry Potter e Draco Malfoy, Frodo e Legolas ou Kirk e Spock. Ficção de transformação é outro gênero novo, em que homens são transformados em mulheres e experimentam versões invertidas de seus desejos.

    Sexualmente ou não, os avanços tecnológicos prometem novas décadas de profunda experimentação e reflexão, muito além das limitações impostas por códigos religiosos ou sociais. Elas podem ser tanto um instrumento de autoconhecimento e compreensão como um de autoindulgência e dependência psíquica. Como se perguntava Shakespeare, "que sonhos virão quando nos livrarmos de nossos corpos mortais?". Nunca se esteve tão perto da resposta.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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