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    Luli Radfahrer

    O novo empirismo

    08/09/2015 07h22

    Não é preciso ser filósofo para imaginar que as ideias surgem de algum lugar. Mesmo abstrações da Matemática ou Física, em suas dimensões invisíveis, derivam de uma observação da natureza.

    Foi dessa constatação que surgiu o Empirismo, uma corrente de pensamento que diz que todo conhecimento é derivado de uma experiência direta do mundo. Ao enfatizar o papel da evidência para a formação de ideias, essa forma de pensar deu origem ao que conhecemos por Método Científico.

    O Empirismo se opõe ao Racionalismo, um ideal que acredita ser possível chegar a conclusões independente de experimentos, ou pelo menos antes que sejam possíveis. Apesar de parecer coisa de místico, o Racionalismo também é fundamental para a ciência, ao estipular ideias, como as de Einstein ou Higgs, e depois esperar que os experimentos as comprovem.

    O debate entre empirismo e racionalismo é antigo, cada um acreditando ser a única visão possível do mundo. Desde Aristóteles e Platão, muitos pesos-pesados da filosofia se debateram a respeito desse tema. Nos séculos 17 e 18, o Reino Unido foi um celeiro de empíricos, que ajudaram a levar as ideias do Método Científico proposto por Isaac Newton para boa parte das inovações da Revolução Industrial.

    John Locke, um de seus principais proponentes, via o ser humano como uma folha em branco, "tábula rasa" sem compreensão do mundo. Somente através de sensações vividas e da reflexão tirada a partir delas que ele seria capaz de aprender. Sua proposta levou a linhas de pensamento como o Positivismo Lógico, segundo o qual a ética faria pouco ou nenhum sentido, uma vez que nenhuma observação poderia confirmá-la.

    Foi só no começo do século 19 que Immanuel Kant, em sua Crítica da Razão Pura, propôs por fim ao debate ao declarar que ambas as partes são importantes. Segundo ele, o conhecimento humano começa pelos sentidos, passa pela compreensão e se complementa com a razão. O raciocínio analítico (derivado da razão) e o sintético (derivado da experiência) não seriam capazes de explicar o mundo por conta própria. Em outras palavras, Não existe o concreto sem o abstrato e vice-versa.

    Mais de dois séculos depois da morte de Kant, o Empirismo Radical ressurge com força total, dessa vez anabolizado pela fúria econômica das tecnologias digitais. Sistemas de "Big Data" e análises de métricas complexas se propõem a analisar todos os dados existentes e, a partir dos resultados coletados, verificar hipóteses. Seus principais defensores alegam que não é mais preciso desenvolver teorias, uma vez que as evidências provenientes das enormes bases de dados seriam suficientes para descobrir padrões e propor soluções.

    Essa forma de pensamento parte de uma simplificação perigosa: que há uma divisão essencial entre as conclusões baseadas em raciocínio e as baseadas em fatos. Essa visão reducionista elimina a especulação e leva a um gigantesco pragmatismo, em que se busca tirar a maior vantagem possível das coisas como estão, já que não é possível imaginá-las de outra forma.

    John Stuart Mill, pai do Liberalismo, propôs no século 19 que o raciocínio a partir de evidências seria fundamental para todo conhecimento significativo. Segundo ele, verdades matemáticas nada mais eram do que generalizações confirmadas de experiências. Todas as pessoas, objetos físicos, suas propriedades e eventos poderiam ser completamente redutíveis a símbolos. Em sua filosofia não havia lugar para o conhecimento baseado em ideias. Sua visão "científica" da sociedade e das relações humanas não considerava válida nenhuma possibilidade além das propostas por experimentos, medições, fórmulas e funções matemáticas.

    No começo do século 20, uma forma de pensar chamada de Positivismo Lógico partiu da mesma premissa. Empirismo radical, ela tentou aplicar ideias de lógica matemática a relações sociais, influenciando experimentos sociais perigosíssimos como os vistos no Taylorismo, Socialismo e Nazismo.

    Embora seja fundamental para o Método Científico que todas as hipóteses e teorias sejam testadas contra observações do mundo natural, há mais mistérios entre o céu e a terra do que pode supor a nossa vã ciência. O Empirismo, ao acreditar que a experiência sensorial seja a única fonte de ideias, rejeita a capacidade de transcendê-las e de inventar coisas completamente novas que não condizem (quando não contradizem) a própria experiência.

    O Empirismo Radical anda de braços dados com a desigualdade econômica e o desenvolvimento industrial. Ao se mover no espaço "lógico", ele expande a definição do que seria "científico" para além do razoável, transformando as pessoas em peças de fácil reposição. Ele não se preocupa em valorizar qualquer forma de acontecimento ou raciocínio que não possa ser diretamente medido, quantificado e equacionado.

    O que poucos parecem levar em conta é que a ciência mudou ao longo do tempo. Boa parte dos filósofos gregos fazia uma forma de ciência. Foi só depois da Renascença que a "Filosofia Natural" começou a se separar da Metafísica, criando nos séculos seguintes divisões cada vez mais restritas e especializadas. Ganha-se em especialidade, perde-se em abrangência.

    As visões racionalista e empírica não devem conflitar, mas ser relativizadas em busca de um raciocínio mais amplo e multidisciplinar. Ao se oporem, quem perde é a ciência, que apesar de se tornar específica, parece incapaz de verificar problemas sistêmicos, como a falta de água, explosão populacional ou aquecimento global.

    Boa parte dos grandes danos feitos a populações humanas e ao planeta veio de visões utilitárias, reducionistas, que deixavam de considerar o que realmente acontecia em nome do que "deveria acontecer". Ao se desvalorizar boa parte da visão global, inquisitiva e dedutiva das humanidades em nome de algoritmos e bases de dados, perde-se boa parte da sensibilidade e reflexão com relação ao mundo. Ao se desenvolver uma visão mercantilista e financeira que rejeita ocupações ou tarefas que não gerem ganhos imediatos, cria-se uma visão instrumental da educação e vida social que a torna vazia de sentido.

    Não é de se espantar que a depressão seja pandêmica.

    Boa parte da Cultura de uma sociedade não é derivada de seu poder militar ou industrial, mas de sua capacidade de refletir a respeito do que é feito, apreciando aspectos da vida que vão muito além de carreiras e salários, e tomando decisões políticas para o bem de todos. Quando isso não acontece o que sobra é um conjunto de peças em uma engrenagem, a reclamar com toda razão que a vida não faz muito sentido nem é satisfatória.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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