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    Luli Radfahrer

    Errare humanum est

    29/09/2015 02h00

    Dizem que o autor da frase foi Sêneca, aquele filósofo que mais tarde se tornaria tutor de Nero. Mesmo que não tenha sido, o termo é bastante aplicável a ele.

    Sêneca foi um dos primeiros grandes pensadores a estudar a complexidade da natureza e das relações humanas. Seus textos, que já foram bastante impopulares - na Divina Comédia Dante o coloca no primeiro círculo do inferno, o "limbo" - hoje são bastante apreciados, ajudando muitos a resgatar o valor do contato e da empatia em um ambiente cada vez mais pragmático.

    Onde Sêneca errou, e feio, foi na importância que deu aos livros. Para ele, o acúmulo de volumes não levaria à cultura ou diversidade, mas a uma grande distração. Sua recomendação era ler poucas e boas obras, repetidas vezes, para preservar a sanidade mental.

    Ele não estava sozinho em sua luta contra o texto escrito. Não faltavam críticos para demonizar a invenção, acreditando que a tecnologia tinha ido longe demais e precisava ser interrompida. A palavra escrita era promíscua, incontrolável e desqualificada, e ainda podia ser facilmente distribuída sem o conhecimento ou o consentimento de seu autor. Era impossível fazer perguntas para o texto, ou mesmo verificar sua validade.

    Mais radical do que Sêneca, Platão defendia que a dependência na palavra escrita enfraquecia o caráter e criava um comportamento distraído. Ao terceirizar fatos e histórias para o papel escrito, as pessoas não precisariam guardar grandes quantidades de informação na cabeça, e se tornariam extremamente dependentes do que estivesse escrito, mesmo que fosse por outros. Isso levaria, segundo ele, a uma inevitável contaminação do conhecimento com falsas informações.

    Na Europa do final do século 15, quando a imprensa se popularizou, outros grandes nomes levantaram a voz contra seus efeitos perniciosos. De nada adiantava dizer que o processo era mais rápido, barato e preciso do que as cópias feitas à mão. Muitos acreditavam que a civilização tinha chegado a seu fim.

    Entre eles estava Erasmo de Rotterdam, coincidentemente um grande fã de Sêneca, que em 1525 protestou contra o excesso de novos livros, porque isso causaria impedimentos e restrições no processo de aprendizado.

    O erro de Erasmo é ainda mais grave se for levado em conta que, por volta de 1530, seus textos correspondiam a mais de 10% dos livros vendidos na Europa. Crítico social, padre e teólogo, ele era um dos grandes humanistas da época. Responsável por revisões importantes de textos clássicos em grego e latim, ele influenciou muitos pensadores da reforma protestante. Mas como bom hacker, preferiu não deixar o catolicismo por crer que provocaria mudanças maiores do lado de dentro da instituição, ao estimular a tolerância religiosa e a convivência com ideias conflitantes.

    Da mesma forma que Erasmo, o grande matemático Gottfried Leibniz acreditava que a enxurrada de livros levaria à barbárie. René Descartes achava que seu acúmulo era um desperdício intelectual, pois o bom conteúdo estava misturado com tanto lixo que levaria mais tempo para encontrar uma informação do que para redescobri-la.

    No entanto essas tecnologias prosperaram. E a sociedade prosperou com eles. Enquanto era possível para um intelectual do Renascimento ficar a par de quase tudo que tinha sido produzido em diversas áreas, hoje se sabe que, mesmo com as gigantescas bases de dados na Internet e os melhores mecanismos de busca, a ideia de onisciência não passa de mito.

    Não é preciso estabelecer paralelos entre os erros de gente tão brilhante e o que se diz, pensa e fala a respeito do mundo digital hoje. Eles são óbvios. Hoje não se discutem as enormes vantagens que a escrita ou a impressão trouxeram para a vida humana, mesmo sabendo que a mesma gráfica que imprime um Erasmo ou um Sêneca imprime bobagens descartáveis em volume muito maior. Por mais que uma visita a qualquer serviço de rede social faça com que o se percam as esperanças na espécie humana, não se questionam as vantagens da Internet e de seus desdobramentos.

    Em 1937, os brilhantes irmãos Gershwin compuseram uma música lembrando que todos riram quando Cristóvão Colombo disse que o mundo era redondo; que não faltaram risadas quando Edison gravou sons; que riram de Marconi e sua comunicação sem fio, de Fulton e seu barco a vapor, de Hershey e sua barra de chocolate, de Ford e seu Modelo T e de tantos outros.

    É assim que as pessoas são, concluía a canção. Só nos resta rir por último.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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