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    Luli Radfahrer

    Crime digital é crime

    27/10/2015 03h00

    Já está na hora de abandonar os termos "digital" e "eletrônico" no que diz respeito às relações mediadas por computadores e afins. Da mesma forma que não se usam os termos "elétrico", "mecânico" ou "químico" para se referir a questões de infraestrutura, a classificação de um ato como "digital" coloca a ênfase no componente errado do processo. E pode minimizar a sua importância.

    Digital não é sinônimo de tecnologia. É uma forma de relacionamento. Uma discussão por WhatsApp não é melhor nem pior do que uma discussão por carta ou fax. E, como suas anteriores, deixa rastros que podem ser documentados ao mesmo tempo que ajudam a solucionar erros de interpretação.

    Um chaveiro que invada um prédio e teste cada porta sem autorização de seus proprietários, munido de um conjunto de ferramentas dedicadas e um grande molho de chaves é um criminoso. Se for pego, precisará de uma boa justificativa para não acabar na cadeia. Certamente algo melhor do que dizer que pretendia entrar nas casas para deixar seu cartão e mostrar que as fechaduras usadas eram inseguras, sem a intenção de levar nada.

    Redes digitais, como a eletricidade e os motores a explosão, já foram uma grande novidade. Não são mais. Hoje elas permeiam boa parte das interações entre pessoas, empresas e governos. É cada vez menor o número de operações relevantes possível sem o auxílio de computadores e da Internet.

    Comércio Eletrônico é Comércio, e o mesmo vale para quase toda transação. Mesmo que o consumidor não use aplicativos nem vá a websites para realizar a compra, boa parte das transações financeiras, logísticas, administrativas e de marketing não seria possível sem a rede. A diferença dos termos (ou a utilização do prefixo "e-") mais dificulta a compreensão do processo do que o explica.

    Música eletrônica, da mesma forma, é música (ou não é música, conforme o critério pessoal de quem a escuta). Há muito de eletrônico nos processos de captação, produção, edição, masterização e distribuição de uma peça sonora, pouco importa que tenha sido produzida em instrumentos "acústicos" ou gravada em LPs.

    Livros e textos jornalísticos não dependem do meio para transmitir a sua mensagem. Estejam em papel, Kindle ou áudio, sua argumentação ainda é a mesma. Jogos eletrônicos, estejam baseados em vídeo ou não, são jogos. E, portanto, envolvem as mesmas paixões e torcidas.

    Cursos à distância promovem, ou deveriam promover, treinamentos e capacitações. Se não o fazem, na maior parte das vezes a culpa é de conteúdo fraco e material didático ruim, mais preocupado com a firula gráfica do que com a efetiva formação.

    O meio digital não pode salvar a reputação de quem acredita que ensinará conceitos delicados por meio de desenhos animados de baixa qualidade e perguntas em forma de teste com cronômetros. Se isso não funcionaria no tempo da apostila, não é de se esperar que funcione hoje.

    Uma transação financeira, seja em cheque, cartão, home banking ou aplicativo, movimenta uma riqueza que, apesar de intangível, não é menos verdadeira. Por mais que a agência seja virtual, a conta e o saldo são reais.

    Mediadas por telinhas ou não, as relações sociais contemporâneas não são mais ou menos intensas por estarem acompanhadas de bonequinhos e caretas. Bullying, assédio e preconceito são crimes. O fato de serem realizados à distância, sem compreensão do contexto, por impulso ou incentivado por um grupo não fazem desses delitos atos menos graves.

    Ações de espionagem, sabotagem e furto de informações entre governos, hoje mais popular do que nos românticos tempos da Guerra Fria e seus 007s munidos de câmeras de microfilmes e bombas-relógio, devem ser tratadas como incidentes diplomáticos. É preciso remover delas o prefixo "cyber-", que nesse caso, parece mais um eufemismo do que uma categoria.

    A espionagem industrial chinesa, que rouba os projetos de aviões militares dos EUA, precisa ser punida pela Organização Mundial do Comércio ou por órgãos de defesa de patentes, propriedades comerciais e segredos militares, não por um grupo de nerds atrás de seus laptops.

    A sabotagem do programa nuclear Iraniano pela ação conjunta dos governos dos EUA e Israel, por mais benéfica que tenha sido para o resto dos países do Oriente Médio (e do mundo) é um ato de guerra, uma invasão com destruição, e deve ser tratada como tal.

    O roubo de documentos oficiais, por mais que aumente a transparência da diplomacia global, não deixa de ser um furto. E pode colocar em risco a segurança de muitos países. Figuras controversas como Julien Assange e Edward Snowden não teriam a fama que têm se não estivessem em um vácuo de legislação.

    Por ignorância e preguiça, muitos culpam o meio digital por desvios da sociedade. A rede pode acelerar e amplificar os discursos, mas não os cria. Não se pode culpar o megafone pelo discurso de ódio que ele amplifica.

    No entanto esse parece ser exatamente o problema vivido hoje. Culpa-se a tecnologia por desvios causados por quem a utiliza com objetivos escusos, a ponto de que muitos proporem a sua extinção ou restrição de uso, o que não passa de uma gigantesca bobagem, tão prejudicial quanto infrutífera.

    É preciso parar de considerar o mundo digital como um ambiente à parte. Ele não é. Seu conteúdo é gerado pelas mesmas pessoas, com as (más) intenções de sempre e sua característica (falta de) educação. A rede só as torna mais transparentes.

    O mundo não é mais podre por causa da Internet. É só mais honesto. Por mais feia que seja a imagem no espelho, há sempre o consolo de saber que ela é o que há de mais próximo do real.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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