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    Luli Radfahrer

    A internet off-line de Cuba

    03/11/2015 03h00

    Uma visita a Cuba é uma espécie de viagem no tempo. Não só por causa dos prédios art déco, dos carros da década de 1950 ou do clima de filme de espionagem da guerra fria. A "internet" que circula pela ilha tem vários pontos em comum com a rede que se conhecia no século passado, antes da popularização da banda larga e de tudo o que se convencionou chamar de web 2.0.

    Menos de 5% da população de Cuba está conectada. Destes, poucos têm acesso a conexões privadas, distantes da censura pública. Os "privilegiados" que podem usar uma conexão quase livre ainda dependem da transferência de dados por linha discada.

    Para piorar, o controle na ilha é rígido. A censura governamental é intensa, e mesmo nos raros lugares em que alguma liberdade é tolerada, a transferência de dados é muito lenta e cara demais para uma população cuja renda mensal circula em torno de 25 dólares.

    Até 2008, a posse de computadores era ilegal, e mesmo hoje só se pode obter uma conexão wi-fi com autorização do Ministério das Comunicações, o que torna a rede móvel praticamente inexistente.

    Esses fatores deveriam ser suficientes para garantir a Cuba um nível de acesso à informação compatível com o seu vizinho Haiti ou o de regimes fechados como o da Síria ou da Coreia do Norte. No entanto não é isso o que acontece.

    A criatividade de uma população com o maior nível educacional desse hemisfério, sedenta por informação e habituada a se virar frente a diferentes formas de escassez, gerou uma forma diferente da revolução digital.

    Por cerca de US$ 1 por semana, muitos cubanos recebem o que se convencionou chamar de "pacote semanal": uma combinação de aplicativos, filmes, séries, revistas, textos e vídeos de formação profissional, gravados em pen drives e contrabandeados por meio de uma rede informal de "mulas de dados", portadores que cruzam as cidades a pé ou de bicicleta para realizar a tarefa que os cabos de fibra ótica e redes de telefonia fazem em outros países. A Wikipedia, por exemplo, é baixada por muitos em grandes pacotes de 2 a 5 Gigabytes, para consulta posterior em smartphones.

    A necessidade, dizem por aí, é a mãe da invenção. Na ilha, a informação permeia as fronteiras de várias formas: alguns contrabandeiam ou improvisam antenas de conexão a satélites. Outros desviam parte da conexão reservadas a hotéis, empresas estatais, umas poucas multinacionais, embaixadas e escritórios do governo. Outros ainda improvisam antenas de alta potência para captar sinais de TV de Miami e convertê-lo em formato digital. A gambiarra é tão hi-tech quanto simples e precária.

    Boa parte da transferência dos dados beneficia os diversos membros da cadeia. Cada nó tira a sua comissão e o resultado geral é um serviço muito mais barato e eficiente do que pode oferecer a maioria dos provedores de acesso, e por meio do qual se pode conseguir praticamente de tudo, em blocos ou sob demanda, desde que não inclua conteúdo pornográfico ou político –cuja pena para quem os tiver em sua posse pode ser bem grave.

    A experiência, naturalmente, é passiva e chega a ser quase inútil para ferramentas de compartilhamento como blogs e redes sociais, mas não é muito diferente do acesso que se tem em mais da metade do planeta, que tantos se apressam em classificar de "excluídos digitais". Entre eles estão fatias consideráveis da zona rural de países bastante desenvolvidos ou democráticos. E mais de 80 milhões de brasileiros.

    O conteúdo distribuído na rede pedestre de Cuba muitas vezes não chega a ser consumido em computadores ou aparelhos de reprodução de DVD. Boa parte da população mais carente carrega seus patrimônios de dados consigo o tempo todo, em busca de alguma TV ou equipamento em que possa plugar suas memórias para assistir ou estudar o conteúdo de seu interesse.

    Aos poucos esse acesso à informação alimenta formas de dissidência e resistência ao regime, por meio de pequenos grupos de ativistas armados de seus smartphones com câmaras e pen drives que, mesmo sem acesso direto, conseguem captar informações e registrar opiniões, para posteriormente distribuí-las de diversas formas, cientes de que a única forma de fazer com que a informação chegue a todos é dar a ela a forma viral, mesmo que passe longe de gigantes como YouTube.

    Alguns desses conteúdos até chegam à Internet para consumo do resto do mundo. Mas nem sempre são os mais relevantes.

    Blogueiros consultam páginas baixadas e armazenadas em seus computadores, escrevem seus textos em casa e depois usam os poucos segundos que o seu orçamento permite para ir a uma lan house, atualizar o site, copiar outras páginas de conteúdo essencial e sair de lá com tudo o que precisam para estudar registrado em um pen drive.

    Há rumores de que exista uma rede privada com quase 10 mil computadores a compartilhar a informação que recebem da internet para distribuir por guerrilheiros de dados. Desconectada da rede-mãe, ela é limitada, mas chega a ter até uma rede social, que, como as antigas BBS, faz boa parte do que hoje é delegado pelos mais privilegiados a monopólios como o Facebook.

    A rede é libertadora. Em suas diversas formas ela tende a gerar uma sociedade mais esclarecida, informada e tolerante. Mesmo que sejam extremamente tortos os meios para se alcançarem tais fins.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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