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    Luli Radfahrer

    Empreendedorismo à Neymar

    24/11/2015 02h32

    É comum, nas diversas áreas de inovação da indústria de tecnologia, cultivar a figura do empreendedor que, por meio de sua start-up, vence os obstáculos de um governo pesado e burocrático para gerar a sua ideia, levantar um grande investimento de fundos de capital e dominar o mundo.

    Não faltam admiradores para a figura dos heróis corporativos contemporâneos, considerados os grandes vencedores em um país que não os reconhece nem dá condições a eles.

    É fácil cair na cantilena de que o Brasil é um país difícil. E não seria eu, um simples colunista de tecnologia, a propor o contrário. Minha crítica vem do fato de que, assim como jogadores de futebol, boa parte dos empresários prefere queixar-se ou sair do país a protestar e demandar mudanças.

    Fala-se de regiões como o Vale do Silício ao redor do mundo, mas a realidade é que só existe um Vale do Silício; e ele está na Califórnia. Foi construído graças a uma gigantesca política de desenvolvimento governamental, acompanhada de uma relação intensa com escolas e centros de pesquisa.

    Desde os primeiros frutos, a prática de reinvestimento em tecnologias emergentes é tão habitual que se tornou quase obrigatória.

    Desse modo, ganha-se dinheiro com redes, que é reinvestido em semicondutores, cujos lucros desenvolvem a microinformática e daí para o desenvolvimento de uma indústria de software.

    Parte dos frutos é reinvestida em serviços web, tecnologias de banda larga, sistemas de segurança e criptografia, redes sociais, smartphones e dispositivos de conexão móvel, aplicativos dedicados, aprendizado de máquina, inteligência artificial, tecnologias vestíveis, internet das coisas, veículos autônomos, cidades inteligentes, biotecnologia, nanotecnologia, computação quântica...

    Enquanto isso, o resto do mundo –como que mesmerizado frente ao admirável mundo novo– corre para clonar suas flores enquanto deveria se preocupar com o processo que as faz brotar.

    Uma piada interna nas grandes empresas de tecnologia californianas diz que a indústria de lá é apoiada na sigla IC, que um dia significou "integrated circuits" (circuitos integrados) e hoje está mais para "Índia e China", tanto por suas sweatshops quanto pela gigantesca importação de cérebros oriundos desses países.

    Um empreendedor de uma empresa cuja propriedade majoritária seja de um fundo de investimento dos Estados Unidos é tão brasileiro quanto Kaká, Neymar ou Robinho que, jogando para multinacionais como Barcelona ou Manchester United, não fazem praticamente nada pelo desenvolvimento do esporte no país. Tanto um quanto o outro apenas nasceram no Brasil.

    Talvez (ou exclusivamente) por esse motivo que seja comum ouvir entre os expatriados "de sucesso" o papel de vítima. Quando discorrem a respeito dos variados motivos que os levaram a deixar o país que os formou, é esperado ouvir os mesmos chavões genéricos a respeito de falta de segurança, educação, estrutura e recursos.

    Quando relatam suas vidas na gringa, percebem-se neles algumas atitudes de cidadania (como o pagamento de impostos, a participação na comunidade ou ações de voluntariado) que jamais atrairiam o seu interesse no período em que viviam por aqui. Como uma espécie de paraíso terreno, a imigração serviria como um processo purificador, capaz de deixar para trás todos os comportamentos indesejáveis do passado.

    Quando esse curioso híbrido apátrida visita a republiqueta que lhe deu origem, a recepção é grandiosa, quase heroica. O atleta pisa nos campos brasileiros da mesma forma que o empreendedor pisa nos auditórios nacionais, como espécie de figura santificada, digna da vibração da plateia, que o considera verdadeiro patrimônio local, exemplo a ser seguido.

    Exemplos do que, não se sabe. Nenhum deles fugiu de um regime opressor como o da Alemanha Oriental, União Soviética ou Coreia do Norte. Muito pelo contrário. Boa parte dos mais bem-sucedidos entre os empresários capitalizados é beneficiária de um sistema desigual e injusto, que concentrou o pouco que tinha de suas riquezas nas instituições que formaram aqueles cérebros que agora emigram.

    Não parece haver em suas consciências o fato de que boa parte do desenvolvimento estrangeiro vem exatamente dessa força de trabalho, muscular e cerebral, de países exportadores de talentos.

    Enquanto muitos esportistas ainda têm a justificativa de serem de origem humilde, o mesmo não pode ser dito da maioria dos empreendedores brasileiros. Formados nas melhores universidades públicas do país, uma vez de posse de seus diplomas, voltam as costas para seus centros de pesquisa e só retornam a eles para uma eventual corrida ou pedalada no final de semana.

    Por mais que tal prática enriqueça patrimônios individuais, há poucas dúvidas de que ela prejudique o ambiente que os forma.

    Propriedade intelectual de predadores multinacionais com nomes tão evidentes como "Tiger", jovens empreendedores acreditam na conversa sedutora de seus "anjos" investidores, aparentemente sem se darem conta de que não passam de funcionários com códigos de vestimenta e cargas horárias diferentes de seus pais, cujo volume de trabalho intenso, ausência de direitos e nível de estresse tendem a ser muito maiores do que os antigos empregos que deixaram em nome de um sonho de "liberdade".

    Chega a ser esquizofrênico que universidades e centros de pesquisas sejam deixados à míngua justamente pelas empresas que mais se queixam que não há profissionais qualificados em volume ou com a formação adequada.

    Quando estes conseguem, apesar de todos os obstáculos, criar tecnologias genuinamente nacionais como as que nos deram o carro a álcool, um agronegócio forte e uma indústria aeronáutica poderosa, não faltam os pessimistas e detratores a reclamar de investimentos com finalidade política ou produtos de qualidade inferior ao similar estrangeiro.

    A única forma de se manter competitivo em uma economia da inteligência é desenvolver o potencial das ideias criativas brasileiras, construindo para isso estruturas que impulsionem a força local, em vez de ter como principal plano de negócios a sua aquisição pelo abutre da vez.

    luli radfahrer

    Escreveu até abril de 2016

    É professor-doutor de Comunicação Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje é consultor em inovação digital.

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